O
dia está cinzento, cai uma chuva morrinhenta e as ruas estão vazias. As placas
anunciam a chegada a Miranda do Douro, em mirandês, Miranda de l’ Douro, e são
um lembrete imediato da hibridez linguística e cultural da cidade que faz
fronteira com Zamora, Espanha. Aqui, o telemóvel confunde-se e vai alternando
entre hora portuguesa e hora espanhola, mas quern procura um encontro com a
natureza não vem equivocado. Miranda, «cidade-museu» de Trás-os-Montes, mantem
o passado perto do coração. Dos pauliteiros ao burel das capas de honra,
passando pela língua, a identidade da região tern saído praticamente ilesa face
à passagem do tempo.
Igualmente
bem preservada, mas ainda desconhecida por muitos, é a área verde protegida que
envolve a cidade, um dos pontos abrangidos pelo território do Parque Natural do
Douro Internacional, ou Arribas do Douro, correspondentes ao Parque Natural de
Castela e Leão, do lado espanhol. São filas de ingremes rochedos de uma beleza assombrosa,
cortadas pelo Douro serpeante e que servem de refúgio a uma grande comunidade
de aves como águias, abutres e cegonhas. Por esta altura do ano revestem-se de
cores com afloração de espécies como a giesta, o rosmaninho e a urze. Há vários
pontos de interesse no concelho para apreciar o encanto do parque, mas é preciso
descer até ao cais fluvial de Miranda do Douro para encontrar a sede portuguesa
da ESTAÇÃO BIOLOGICA INTERNACIONAL DO DOURO, entidade para o estudo e preservação
da biodiversidade que resulta da cooperação luso--espanhola. E este o ponto de
partida para o cruzeiro ambiental no navio-aula que, ao longo de uma viagem de
hora e meia, mergulha nas profundezas das arribas. O barco dispõe de 120
confortáveis lugares, cobertura envidraçada e dois terraços exteriores. À
medida que se avança rio fora, ficam para trás os carros, as casas, as
estradas, o vaivém da civilização e da rotina. Resta o som da água a ondular
com os motores, o ar puro que regenera os pulmões e o vislumbre das aves que
fazem ninho nas escarpas.
PASSEAR COM UM
PASTOR
«É
preciso ter sorte para apanhar as espécies no seu habitat natural e poder
observá-las», diz Andreia Jorge, convidando o público a fechar os olhos, ao
mesmo tempo que é emitido um ruido através de um microfone no convés para chamar
as aves. Minutos depois, é devolvida ao barco «uma sinfonia natural que muda
todos os dias», salienta a guia. Pelo caminho, observa-se, ainda, a Poça das
Lontras, onde estas aproveitam as águas que correm pela ladeira para se refrescar
e alimentar. O ponto alto do percurso é o desembarque num pequeno socalco só
acessível por barco. No regresso, há uma prova de vinho do porto à espera. Para
terminar a visita, vale a pena espreitar a Douro Valley Shop, loja que vende mel, queijos, vinhos e azeites do vale
do Douro.
De
volta ao centro da cidade, recarregam-se energias à mesa do MIRADOURO, um
restaurante amplo e acolhedor com serviço familiar. A regionalidade é o
chamariz da casa, que tira partido da simplicidade da carta para bem servir. As
entradas vão dos calamares à romana aos cogumelos salteados. Nos pratos
principais sobressaem as opções de bacalhau, nomeadamente o bacalhau à
Miradouro, uma posta generosa banhada em molho bechamel e servida com batata
frita; na carne, há a famosa posta à mirandesa, guarnecida com batata a murro e
legumes. O espaço tem ainda uma das mais cobiçadas vistas da cidade, que da
simultaneamente para as arribas e, ao longe, para a igreja de Miranda do Douro,
uma das maiores (senão a maior) da região.
A
riqueza do património estende-se a várias aldeias do planalto mirandês. Em
Freixiosa, de binóculos em punho e com muita paciência, também se podem
observar os pássaros que se escondem entre as sombras do alto das árvores. Mas
o verdadeiro cartão-de-visita da terra e a pastorícia de percurso, uma das mais
características atividades do Nordeste Transmontano. Albino S. Pedro, 58 anos,
pastor desde os 11, e um dos últimos na profissão que ajudou a moldar a
paisagem e economia da zona. Não admira, pois, que seja ele o guia do passeio
matinal organizado pela PALOMBAR - Associação de Conservação da Natureza e do
Património Rural. De cajado na mão, Albino conduz o gado encosta abaixo, num
caminho de terra batida ladeado por densa vegetação que e um verdadeiro banquete
para os animais. Enquanto as cabras sobem aos troncos das arvores a procura da
folhagem mais saborosa, o pastor recorda que esta e a sua rotina «desde
catraio» e que, em tempos, participou «num filme que foi feito sobre a gente
daqui». Refere-se a Trás--os-Montes (1976), documentário ficcionado de António
Reis e Margarida Cordeiro que retratava personagens típicas da Terra Fria. Enquanto
responde as perguntas dos mais curiosos com um sorriso humilde, leva o grupo a
um dos miradouros da aldeia, para mais uma panorâmica de encher o olho.
POESIA MIRANDESA
COM VISTA
A
norte de Freixiosa, para lá do centro de Miranda, está a Aldeia Nova. É da
Igreja Matriz, edifício quinhentista restaurado em 2015, que arranca o percurso
pedestre preparado por Domingos Raposo, professor de História e de Língua e
Cultura Mirandesa. Começa por saudar os presentes com «Ola, boa-tarde», seguido
do «Oula, buonas tardes» que se pode ouvir na zona, mescla linguística que
marca todo o passeio. A medida que se sai da aldeia para descer em direcção ao
rio, o sol vai alto e o caminho sobe e desce entre os penedos, mas e um
verdadeiro privilégio pisar os campos floridos que adornam as arribas.
A
primeira paragem do percurso é o MIRADOURO DE PENHA D'ÁGUIA ou Penha Laila,
urna formação rochosa que é uma varanda para o mais estreito ponto da fronteira
no Nordeste Transmontano. São 52 metres de rio que separam Portugal e Espanha,
proximidade evidenciada quando se veem pessoas do tamanho de formigas a
apreciar a paisagem do lado espanhol. O destaque do percurso é, contudo, 0
MIRADOURO DE SAO JOÃO DAS ARRIBAS. Situado junto à capela medieval inserida no
castro da Aldeia Nova, apresenta uma deslumbrante vista, tornada ainda mais
especial com a leitura de poesia em mirandês a acompanhar.
De
volta a aldeia, o ponto de chegada é a PUIAL DE L DOURO, casa de turismo rural
e sede dos passeios e atividades organizados por Domingos Raposo, proprietário.
A entrada, repara-se de imediato nos confortáveis sofás, cadeiras e redes do
terraço, ideais para desfrutar dos dias de sol e da quietude do campo. No
interior, as paredes de granito e os móveis à antiga dão-lhe um ar
simultaneamente rustico e senhorial, e a decoração casa o tradicional e o
moderno de forma harmoniosa. Sobressai o detalhe do forno de pão antigo que
enquadra uma das escadarias. Há nove suites, todas com decoração diferente, mas
igualmente espaçosas e iluminadas. No pequeno-almoço brilham produtos caseiros
e regionais.
Se
a prioridade for o conforto dentro da cidade, a escolha pode passar pelo hotel
e restaurante 0 MIRANDES. Pica a dez minutos a pé do centra histórico de
Miranda. Os quartos são duplos ou suites e primam pela comodidade.
Característica, aliás, realçada pela integração do restaurante que serve almoços
e jantares no mesmo edifício. O espaço é conhecido pela suculenta posta à
mirandesa, servida com batata frita, arroz e pimento vermelho, e pelo
estaladiço bacalhau na brasa, especialmente procurado pelos espanhóis que vivem
perto da fronteira. Nas sobremesas, destaca-se a torta de laranja e amêndoa. Os
vinhos regionais são servidos em jarro.
A ALDEIA DOS
POMBAIS
Na
busca pela natureza do território, há dois desvios importantes a fazer. O
primeiro e Atenor, aldeia onde se localiza o CENTRO DE VALORIZACAO DO BURRO DE
MIRANDA, sede da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino. A
preservação da espécie é a prioridade, sendo organizadas visitas ao centro,
passeios com burros e sessões de terapia com os animais. A visita desta manhã
está a cargo de Carolina Martin e começa onde as crias recentes se passeiam.
«Os nomes dos burros são dados de acordo com uma letra por ano. Este ano é “O”,
explica, convidando o público a baptizar um dos burrinhos. Mas eles são os
primeiros a conquistar quern os visita, demorando-se nos afagos recebidos. Ao
lado, está a «maternidade dos burros», onde são mantidas as crias e as mães e,
a um passo dali, dois estábulos que opõem «os burros que estão de dieta e os
que precisam de engordar». O macho não castrado de serviço parece-se com um
burro meiguinho que rejubila com a atenção dos visitantes, mas chama-se
Cordeiro.
Logo
se ruma a aldeia de Uva, esta já pertencente ao concelho de Vimioso e também
conhecida como «a aldeia dos pombais». A paisagem faz jus ao nome, pois o cenário
é pontilhado pelos 45 pombais que se espalham pelas encostas. Américo Guedes,
responsável da Palombar, cuja sede é em Uva, explica que «estas construções são
típicas da paisagem transmontana», podendo ser de três tipos, «redonda, redonda
com telhado cónico ou em forma de ferradura». Além de constituírem um lugar de refúgio
e alimentação de pombos, as estruturas de pedra são usadas por animais como os
estorninhos e as corujas.
O
recorrido termina como começou. Nas Arribas, desta feita no cais da Bemposta,
em Mogadouro. É daqui que parte o cruzeiro da NATURISNOR, um passeio de duas
horas feito ao largo do Douro num barco a céu aberto. Esta caraterística
permite, desde logo, um contacto mais próximo e direto com a fauna e flora que
habitam as escarpas. Os adeptos de observação de aves podem mover-se livremente
pelo barco para identificar espécies como o grifo, o abutre--do-egipto ou a águia-real.
Esta é uma paisagem que merece ser apreciada a olho nu por todos os amantes da
natureza. Aqui e agora, o silêncio é interrompido apenas pelo canto das aves.
A beleza dos penhascos que moldam o rio dão uma sensação de completude. Depois
de descobertos os pontos secretos deste mapa do tesouro natural, o difícil é voltar.*
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