quarta-feira, 19 de setembro de 2018

MAPPLETHORPPE EM SERRALVES

Em 1989, a direcção da Corcoran Gallery em Washington decidiu cancelar a exposição de um fotógrafo com medo que a obscenidade das suas imagens afugentasse os mecenas do museu. O incidente deu origem a um dos mais intensos debates públicos sobre a relação entre liberdade artística e de expressão e as condições de financiamento das instituições museológicas. Esse fotógrafo chamava-se Robert Mapplethorpe e estava morto havia três meses ceifado pela sida, uma implacável epidemia então quase totalmente identificada com o sexo homossexual.
Quanto às imagens, não se pode dizer que tenha facilitado a vida a quern tomou essa decisão, por mais condenável que ela seja. Elas expunham de forma crua e afirmativa as práticas bondage das comunidades sadomasoquistas de Nova Iorque mostrando homens vestidos de latex entregues a actos sodomitas ou de submissão que Robert havia fotografado obsessivamente na transição dos anos 70 para a década seguinte e, sem surpresa, provocaram pouco menos do que um tumulto entre as várias comunidades religiosas. Robert Mapplethorpe iniciava assim a sua posteridade artística sob o signo do escândalo bem no olho do furacão de uma guerra cultural entre o conservadorismo religioso e a América "liberal" particularmente efervescente nos anos da Administração Reagan e ainda hoje por sarar.
Humano, demasiado humano, poderíamos dizer de um artista cuja obra revela uma sexualidade radicalmente consciente do poder do pecado, a que como no caso de Buñuel ou Pasolini não será alheio o background católico. Que ela chegue a Serralves quase trinta anos depois destes acontecimentos, curiosamente num momento de particular recrudescimento nos EUA do conservadorismo e, simultaneamente, de hipersensibilidade às questões de género constitui uma escolha particularmente feliz.
Com curadoria de João Ribas, a retrospetiva que agora se apresenta transcende, porém, consideravelmente, os seus momentos mais provocadores. Resultado de uma parceria com a Mapplethorpe Foundation de Nova lorque, ela inclui quase 200 imagens que se dividem por retratos de estúdio, autorretratos, naturezas mortas, nus eróticos, polaroides íntimas e algumas assemblages e colagens da fase inicial do seu percurso, mostrando um artista consciente dos géneros da representação mas que os aborda de forma muito distintiva. Nascido em 1946, Mapplethorpe cresceu em Flora Park, Queens, no seio de uma pacata família de classe média dos subúrbios. Em 1963 ingressa no Pratt Institut, em Brooklyn para estudar desenho, mas é no verão de 1967 que se dá um verdadeiro encontro com o destino. Robert conhece Patti Smith por acaso numa livraria. A empatia com a futura poetisa e rainha do rock underground nova-iorquino que acabara de chegar a Nova lorque pouco menos que faminta é quase imediata. Têrn ambos 21 anos e decidem viver juntos em quartos baratos com pouco mais do que livros de Baudelaire e Rimbaud e móveis apanhados no lixo. Amante, musa profusamente retratada, cúmplice de sempre, Smith saltara com ele a fronteira da adolescência para a vida boémia da grande cidade ao mesmo tempo que jogara um papel decisivo na sua consumação como homem e artista, mesmo depois de Mapplethorpe assumir a sua homossexualidade e se tornar uma celebridade. Como refere, a propósito, a fotógrafa Sandra Rocha: "A sua vida, os seus encontros, os seus sentimentos, as suas dúvidas existenciais, as suas amarguras, as suas dores, o amor, eram ele e foram também o trabalho dele. Mapplethorpe não dissociava a sua expressão artística da sua própria vida."
Esses anos são também decisivos do ponto de vista da sua relação com a fotografia. No final da década de 60 encontramo-lo a produzir colagens e assemblages, mas é quando, em 1970, decide adquirir uma polaroide para trabalhar nessas colagens que a sua relação com a fotografia ganha outra centralidade. Dos instantâneos intimistas dos primeiros anos (que mostrara na sua primeira exposição, na Light Gallery, em 1973) passa a retratos e autorretratos tecnicamente mais sofisticados e encenados captados com uma câmara Hasselblad que adquire em 1975. O essencial da sua fotografia joga-se nesse género mas através de um paradoxo transversal ao conjunto da obra: Mapplethorpe tende a projetar as suas próprias obsessões naqueles que fotografa ao mesmo tempo que usa o autorretrato num jogo de desdobramento de personagens quase heteronímico. Para o artista português José Pedro Cortes, o autorretrato e o aspeto mais atraente da sua produção: "Sempre me fascinaram a exatidão e mistério dos seus autorretratos — que para mim são uma procura da imagem de outra pessoa. O fotógrafo como o seu melhor modelo, como se este duplo papel fosse para ele o exemplo máximo de um tempo complexo e ambíguo." Já os seus nus de homens negros e sexos protuberantes mas de rosto quase sempre invisível, parecem mais materializac6,es das suas obsessões eróticas do que retratos de pessoas. Alguns desses rapazes foram seus amigos ou amantes mas isso não o poupou a acusação de que os objectualizava através da câmara fotográfica. Seja como for, o desejo e a sexualidade foram sempre um motor criativo no caso de Mapplethorpe e se isso é evidente nas imagens associadas ao bondage ou nos nus, não deixa de se insinuar nas suas delicadas naturezas-mortas que emanam uma sensualidade morna e quase abstrata. O mesmo se pode dizer em relação à empatia, evidente nos retratos de Patti Smith (alguns deles tornaram-se capas dos seus discos fundamentais), dos seus amigos mais próximos mas também das figuras mediáticas que fotografou. Como Warhol, Mapplethorpe joga o jogo da celebridade, mas se o primeiro amplifica pela estridência visual o potencial icónico de cada estrela, Mapplethorpe envolve figuras como Richard Cere, Susan Sarandon, Iggy Pop, Debbie Harry, Grace Jones ou o próprio Warhol num halo de intimidade que os humaniza sem lhes retirar o brilho do estrelato.
Outro aspeto fundamental para entendermos Mapplethorpe e a recepção da sua obra tem contornos estéticos. Não seria necessário que Mapplethorpe tivesse fotografado estátuas antigas como fez frequentemente, para reconhecermos no seu olhar sobre os corpos um evidente classicismo. Mesmo quando envolvido por uma iconografia urbana, a ideia de vigor, juventude e proporção está sempre presente, seja no retrato de um Schwarzenegger transformado em Hercules ou no corpo feminino mas musculado da culturista Lisa Lyon. Num texto de 1992, o filósofo Arthur C. Danto, que o identifica como um dos artistas mais relevantes do seculo XX, coloca a questão de forma certeira: o que é escandaloso para o olhar contemporâneo em Mapplethorpe, o que encerra um perigo não é a escatologia, o sexo "desviante", a pornografia mas, que tudo isso tenha uma ambição à altura de um Fídias ou de um Miguel Ângelo, num tempo em que a beleza em arte já era vista com desconfiança.
Se a novidade e o essencial do escândalo das suas fotografias mais radicais já se desvaneceu, se algumas das pessoas que fotografou são agora celebridades mortas ou esvaziadas de brilho, o que sobra então da obra de Mapplethorpe? O célebre último autorretrato de 1988, no qual o seu rosto já encovado pela doença surge iluminado sobre um fundo negro enquanto Robert segura na mão uma bengala com uma caveira, é um verdadeiro testamento artístico e uma boa chave para colocar a questão: vanitas, negrume, sentido trágico, com Mapplethorpe não há experimentalismo mas um poderoso teatro formal que bebe diretamente da sua condição existencial, seja ela alimentada pela fulguração do sexo ou pela antevisão da morte. Nas palavras de José Manuel Rodrigues: "O sentir teatralizado da sua fotografia tem um desespero materializado pela delicada e atormentada imagem refletida nas outras almas. Na sua obra o quadrado ou o rectângulo ganham vida."

Artigo da Revista Expresso de 15 de Setembro
num texto de Celso Martins


A Mostra inaugura no próximo dia 20 e estará patente até 6 de Janeiro

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