Em 1989, a direcção
da Corcoran Gallery em Washington decidiu cancelar a exposição de um fotógrafo com
medo que a obscenidade das suas imagens afugentasse os mecenas do museu. O
incidente deu origem a um dos mais intensos debates públicos sobre a relação
entre liberdade artística e de expressão e as condições de financiamento
das instituições museológicas. Esse
fotógrafo chamava-se Robert Mapplethorpe e estava morto havia três meses
ceifado pela sida, uma implacável epidemia então quase totalmente identificada
com o sexo homossexual.
Quanto às imagens, não se pode dizer que
tenha facilitado a vida a quern tomou essa decisão, por mais
condenável que ela seja. Elas expunham de forma crua e afirmativa as práticas bondage
das comunidades sadomasoquistas de Nova
Iorque mostrando homens vestidos de latex entregues a actos
sodomitas ou de submissão que Robert havia fotografado obsessivamente
na transição dos anos 70 para a década seguinte e, sem
surpresa, provocaram pouco menos do que um tumulto entre as várias
comunidades religiosas. Robert Mapplethorpe iniciava assim a
sua posteridade artística sob o signo do escândalo bem no olho do
furacão de uma guerra cultural entre o conservadorismo religioso e a
América "liberal" particularmente efervescente nos
anos da Administração Reagan e ainda hoje por sarar.
Humano, demasiado humano, poderíamos dizer de
um artista cuja obra revela uma sexualidade radicalmente
consciente do poder do pecado, a que como no caso de
Buñuel ou Pasolini não será alheio o background católico. Que ela
chegue a Serralves quase trinta anos depois destes acontecimentos, curiosamente
num momento de particular recrudescimento nos EUA do conservadorismo e,
simultaneamente, de hipersensibilidade às questões de género
constitui uma escolha particularmente feliz.
Com
curadoria de João Ribas, a retrospetiva que agora se apresenta
transcende, porém, consideravelmente, os seus momentos
mais provocadores. Resultado de uma parceria com a Mapplethorpe
Foundation de Nova lorque, ela inclui quase 200
imagens que se dividem por retratos de estúdio, autorretratos, naturezas
mortas, nus eróticos, polaroides íntimas e algumas assemblages
e colagens da fase inicial do
seu percurso, mostrando um artista consciente dos géneros da representação
mas que os aborda de forma muito distintiva. Nascido em 1946,
Mapplethorpe cresceu em Flora Park, Queens, no
seio de uma pacata família de classe média dos subúrbios. Em 1963
ingressa no Pratt Institut, em Brooklyn para estudar desenho, mas
é no verão de 1967 que
se dá um verdadeiro encontro com o destino. Robert conhece
Patti Smith por acaso numa livraria. A empatia com a futura poetisa e rainha do
rock underground nova-iorquino que
acabara de chegar a Nova lorque pouco menos que faminta é quase imediata.
Têrn ambos 21 anos e decidem viver juntos em quartos baratos com
pouco mais do que livros de Baudelaire e Rimbaud e móveis
apanhados no lixo. Amante, musa profusamente retratada, cúmplice
de sempre, Smith saltara com ele a fronteira da adolescência para
a vida boémia da grande cidade ao mesmo tempo que jogara um papel decisivo
na sua consumação como homem e artista, mesmo depois
de Mapplethorpe assumir a sua homossexualidade e se tornar uma celebridade.
Como refere, a propósito, a fotógrafa Sandra Rocha: "A
sua vida, os seus encontros, os seus sentimentos, as suas dúvidas
existenciais, as suas amarguras, as suas dores, o amor, eram ele e foram
também o trabalho dele. Mapplethorpe não dissociava a sua expressão artística
da sua própria vida."
Esses
anos são também decisivos do ponto de vista da sua relação com
a fotografia. No final da década de 60 encontramo-lo a produzir colagens
e assemblages, mas é quando, em 1970, decide adquirir uma
polaroide para trabalhar nessas colagens que a sua relação com a fotografia
ganha outra centralidade. Dos instantâneos intimistas dos primeiros anos (que
mostrara na sua primeira exposição, na Light
Gallery, em 1973) passa a retratos e autorretratos tecnicamente mais sofisticados
e encenados captados com uma câmara Hasselblad que adquire
em 1975. O essencial da sua fotografia joga-se nesse género mas através
de um paradoxo transversal ao conjunto da obra: Mapplethorpe tende
a projetar as suas próprias obsessões naqueles que fotografa ao mesmo
tempo que usa o autorretrato num jogo de desdobramento de personagens quase
heteronímico. Para o artista português José Pedro Cortes,
o autorretrato e o aspeto mais atraente da sua produção: "Sempre me
fascinaram a exatidão e mistério dos seus autorretratos — que para mim são uma procura da imagem de outra pessoa. O fotógrafo como o seu melhor modelo, como se este duplo papel fosse para ele o exemplo máximo
de um tempo complexo e ambíguo." Já os seus nus de homens negros e sexos protuberantes mas de rosto quase sempre invisível, parecem mais
materializac6,es das suas
obsessões eróticas do que retratos de pessoas. Alguns desses rapazes foram seus
amigos ou amantes mas isso não o poupou a acusação de que os objectualizava através da câmara fotográfica. Seja como
for, o desejo e a sexualidade foram sempre um motor criativo no
caso de Mapplethorpe e se isso é evidente nas imagens associadas ao
bondage ou nos nus, não deixa de se insinuar nas suas delicadas naturezas-mortas
que emanam uma sensualidade morna e quase abstrata. O
mesmo se pode dizer em relação à empatia, evidente nos retratos
de Patti Smith (alguns deles tornaram-se capas dos seus discos fundamentais),
dos seus amigos mais próximos mas também das figuras mediáticas
que fotografou. Como Warhol, Mapplethorpe joga o jogo da
celebridade, mas se o primeiro amplifica pela estridência visual o potencial icónico
de cada estrela, Mapplethorpe envolve figuras como Richard
Cere, Susan Sarandon, Iggy Pop, Debbie Harry, Grace Jones ou
o próprio Warhol num halo de intimidade que os humaniza sem lhes
retirar o brilho do estrelato.
Outro
aspeto fundamental para entendermos Mapplethorpe e a recepção da sua
obra tem contornos estéticos. Não seria necessário que Mapplethorpe tivesse
fotografado estátuas antigas como fez frequentemente, para reconhecermos no seu
olhar sobre os corpos um evidente classicismo. Mesmo
quando envolvido por uma iconografia urbana, a ideia de vigor,
juventude e proporção está sempre presente, seja no retrato de um
Schwarzenegger transformado em Hercules ou no corpo feminino mas
musculado da culturista Lisa Lyon. Num texto de 1992, o filósofo Arthur
C. Danto, que o identifica como um dos artistas mais relevantes do
seculo XX, coloca a questão de forma certeira: o que é escandaloso para
o olhar contemporâneo em Mapplethorpe, o que encerra um perigo
não é a escatologia, o sexo "desviante", a pornografia mas, que
tudo isso tenha uma ambição à altura de um Fídias ou de um Miguel
Ângelo, num tempo em que a beleza em arte já era vista com desconfiança.
Se
a novidade e o essencial do escândalo das suas fotografias
mais radicais já se desvaneceu, se algumas das pessoas que
fotografou são agora celebridades mortas ou
esvaziadas de brilho, o que sobra então da obra de Mapplethorpe?
O
célebre último autorretrato de 1988, no qual o seu
rosto já encovado pela doença surge iluminado sobre um fundo
negro enquanto
Robert segura na mão uma bengala com uma caveira, é um
verdadeiro testamento artístico e uma boa chave para
colocar a questão: vanitas, negrume, sentido trágico,
com Mapplethorpe não há experimentalismo mas um poderoso teatro
formal que bebe diretamente da sua condição
existencial, seja ela alimentada pela fulguração
do sexo
ou pela antevisão da morte. Nas palavras de José
Manuel Rodrigues:
"O sentir teatralizado da sua fotografia tem um
desespero materializado pela delicada e atormentada imagem
refletida nas outras almas. Na sua obra o quadrado ou
o rectângulo ganham vida."
Artigo da Revista Expresso de 15 de Setembro
num texto de Celso Martins
A Mostra inaugura no próximo dia 20 e estará patente até 6 de Janeiro
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