Se não em todas as áreas, com certeza na das invenções e descobertas, a História não tem sido justa com muita gente. A França, sem dúvida, foi a mãe da fotografia. Mas não se pode definir precisamente o pai. Hoje, graças ao trabalho incansável e obstinado do jornalista e professor Boriz Kassoy, um terceiro nome disputa a paternidade da fotografia: Antoine Hercule Romuald Florence, francês de nascimento, mas brasileiro de mulher (duas), filhos (20), netos, bisnetos e tataranetos. Kassoy investiu, de 1972 a 1976, numa das mais ardorosas pesquisas e reconstituições de métodos, técnicas e processos já realizadas no Brasil para levar uma pessoa do anonimato ao pódio da história.
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Hercules Florence, como ficou internacionalmente conhecido a partir da publicação do livro de Kassoy, "1833: a Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil" (editora Duas Cidades, 1980), nasceu em 1804, em Nice, e, com a ajuda do pai, pintor autodidata, estudou artes plásticas. Aos 20 anos, sua natureza inquieta e uma insistente falta de emprego o conduzem a um desconhecido Rio de Janeiro, onde passa um ano como modesto caixeiro de uma casa comercial e, depois, vendedor de livros. Através dos jornais, descobre a vinda do famoso naturalista russo Langsdorff e é aceito como segundo desenhista daquela que viria a ser uma das maiores e mais profícuas expedições científicas realizadas no Brasil dos séculos passados.
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Em vista do acontecido com Rugendas, Langsdorff, após ter contratado Taunay, resolveu acrescentar à expedição um segundo desenhista, e colocou um anúncio no jornal para esse fim. Florence apresentou-se e foi logo contratado. Somava às suas aptidões artísticas um espírito prático e inventivo que lhe permitiu desempenhar tarefas de grande apoio para a expedição, nos quatro anos que com ela viajou. Após a morte trágica de Taunay assumiu o papel de desenhista oficial executou um grande número de desenhos e quadros sobre motivos da flora e da fauna, índios e outras populações da região percorrida, e ainda paisagens. Catalogou também a extensa obra deixada por Taunay e Rugendas.
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Desde o retorno da viagem ao interior do país, Hércules Florence procurou inventar aparelhos de duplicação ou reprodução de registros. Deu início a sua fase de invenções. Primeiramente, para que pudesse imprimir suas anotações sobre a zoofonia, em 1829 (anotações das vozes de pássaros e animais, que fizera durante a viagem); criou, então, a "poligrafia" (1830). Seu próximo passo foi com experiências de fixação da imagem sobre papel, que o levariam, juntamente com Joaquim Corrêa de Mello, a utilizar o nitrato de prata, com sucesso em 1832. Este processo Hércules denominou em seu diário, em 1833, como "fotografia" (photographie). Hércules Florence escreveu seus diários em sua língua materna, o francês, e sempre assinou Hercule, sem o s. Sabia escrever corretamente o português, o fazia em escritos formais. Outras invenções como as do "papel inimitável" (marca d'água) para dinheiro e documentos de valores (1842), a pulvografia (impressão à pó, com cola, sobre tecido (1860) e estudos sobre a arquitetura brasileira (a ordem das palmeiras) e sobre o céu e nuvens, pensando nos jovens paisagistas, são, entre outros, assuntos ainda inexplorados.
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A contribuição de Florence à Ciência, às Artes e à História estava apenas começando. Em 1829, com o fim da expedição, ruma para São Paulo, e, em 1830, inventa seu próprio meio de impressão, a Polygrafie, já que não dispunha de um prelo. Gosta da idéia de procurar novos meios de reprodução e descobre isoladamente um processo de gravação através da luz, que batizou de Photografie, em 1832, três anos antes de Daguerre. A ironia histórica, oculta por 140 anos, é que o processo era mais eficiente do que o de Daguerre. Já em 1833, utilizou uma chapa de vidro em uma câmera escura, cuja imagem era passada por contato para um papel sensibilizado.
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Com o espírito meticuloso que tinha, Hércules Florence registrava em seu diário, numa relação maior de descobertas e pesquisas: "Neste ano de 1832, no dia 15 de agosto, estando a passear na minha varanda, vem-me a idéia que talvez se possam fixar as imagens na câmara escura, por meio de um corpo que mude de cor pela ação da luz. Esta idéia é minha porque o menor indício nunca tocou antes o meu espírito. Vou ter com o senhor Joaquim Corrêa de Mello, boticário de meu sogro, homem instruído, que me diz existir o nitrato de prata".
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Construindo uma câmara escura com uma caixa de papelão, uma paleta de pintor e uma lente, Florence colocou dentro dela um papel embebido em nitrato de prata e durante quatro horas deixou-o exposto à ação da luz que provinha de uma janela através da qual viam-se os tijolos e o teto da casa em frente e parte do céu. Acabou por obter, meio sem entender, a primeira imagem negativa-positiva da história da fotografia. Registrava em seu diário que o boticário, senhor Mello, ajudara-o a batizar o invento, formando a palavra photographia (do grego photos = luz, e graphia = desenho, escrita).
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Em 1833 Florence aprimora seu invento, e passa a fotografar com chapa de vidro e papel pré-sensibilizado para contato. Foi o primeiro a usar a técnica "Negativo/Positivo" empregado até hoje. Enfim, totalmente isolado, contando apenas com os seus conhecimentos e habilidade, e sem saber as conquistas de seus contemporâneos europeus, Népce, Daguerre e Talbot, Florence obteve em terras brasileiras o primeiro resultado fotográfico da história. O Nitrato de Prata, agente sensibilizante e princípio ativo da invenção de Florence, tinham um pequeno inconveniente: a imagem depois de revelada, passava por uma solução "fixadora" que removia os sais não revelados, mantendo a durabilidade da imagem. Constatou que a amônia além de ter essa função, também reagia com os sais oxidados durante a revelação, rebaixando o contraste da imagem final. Conforme seu diário, passou a usar a urina, rico em amônia como fixador "fiz isso por acaso!" De fato, um dia enquanto revelava, esqueceu e preparar o Fixador tradicional. Como a vontade e urina apareceu de repente, não poderia abrir a porta de seu laboratório, com risco de velar seus filmes. Acabou urinando em uma banheira e na confusão, acidentalmente passou suas chapas para lá. Além de descobrir a própria fotografia, descobriu também o processo mais adequado para a fixação da imagem, que atualmente foi substituído pelo "Tiossulfato de Amônia" ou FIXADOR RÁPIDO utilizado atualmente na fotografia Preto & Branco, Colorida, Cinema, Artes Gráficas e Radiologia.
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Compreende-se, portanto, sua amargura e frustração quando em 1839 cerca de sete anos mais tarde, estando na farmácia do doutor Engler, em Itu, ouviu que o "Jornal do Comércio" do Rio de Janeiro anunciava que um pintor francês, Daguerre, descobrira em Paris um processo de fixar imagens por meio da incidência da luz sobre uma placa de metal. Já em 1834 Hércules Florence desabafara em seu diário, amargurado: "Eu inventei a fotografia; fixei as imagens na câmara escura; inventei a poligrafia... Minhas descobertas estão comigo, sepultadas no olvido; meu talento, minhas vigílias, meus sacrifícios, são estéreis para os outros... Se eu estivesse em Paris, lá encontraria, talvez, pessoas que me escutassem, mas aqui não vejo ninguém a quem possa comunicar minhas idéias. Os que me poderiam ouvir só pensam nas suas especulações e na política". Em 1839, acrescentaria: "A fotografia é a maravilha do século. Eu também já tinha colocado as bases, tinha previsto essa arte em sua plenitude; eu a realizei antes do processo de Daguerre, mas trabalhei no exílio. Eu imprimi pelo sol sete anos antes que se falasse em fotografia, e eu tinha dado esse nome. Entretanto, a Daguerre as honrarias".
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As descrições sobre suas invenções constam de seus manuscritos, principalmente, de "L'Ami des Arts Livre par Lui-même", onde também estão relatadas suas observações sobre a Expedição Langsdorff. Suas descrições e desenhos sobre as características físicas, habitações e costumes dos índios, poderiam ser considerados precursores da antropologia visual em nosso país. Hércules Florence introduziu a impressão gráfica no interior de São Paulo, com sua Poligrafia (1830) e posteriormente, criando sua tipografia, onde também imprimiu o primeiro jornal do interior paulista, O Paulista (1842), com a participação do Padre Diogo Feijó. Alguns exemplares das forografias tiradas por Florence existem até hoje, e podem ser vistos no Museu da Imagem e do Som, SP. Sua contribuição, entretanto, só ficou sendo conhecida pelos habitantes de sua cidade, e por algumas pessoas na Capital de São Paulo e Rio de Janeiro, não surtindo, na época, qualquer outro tipo de efeito.
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