quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

"PORTUGAL"
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Tenho que admitir que o meu está muito estafado, com uma capa sem brilho, roçada de muitas reviravoltas e maus tratos, mas admitindo que tenho o exemplar desde 1972, já oferecido usado pelo meu amigo Nuno "Cartucheira", posso gabar-me que, contrariamente ao que fizeram ao meu país, este livrinho proibido no Estado Novo mas manuseado às escondidas por dezenas de amigos meus, está muito bem conservado.
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E isto vem a propósito de um artigo que li no blogue http://artephotographica.blogspot.pt/2012/09/iludir.html  
e que me fez ir procurar o exemplar no estanteamento. É um livrinho para estrangeiros feito por estrangeiros, daquele tipo de europeus convencidos que tudo o que não lhes pertence é de desdenhar tal como na fábula da Raposa e as Uvas.
Vale o que vale, mais pelo conjunto de fotografias documentais que outra coisa qualquer; e diga-se, para ser visto como um livro de fotografia, a qualidade de impressão é péssima.
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Iludir

(revista 2, Público, 26.08.2012)

Mal acabei de ler o texto “Os mistérios de Chris Marker em Portugal” (PÚBLICO, 6.8.12), lancei-me logo na Amazon à procura de Portugal (1957), o livrinho número 16 da colecção Petite Planète que o notável realizador, fotógrafo e escritor orientou para a Seuil. Nesse ensaio, publicado na sequência da morte de Marker, em Julho, Susana S. Martins fez-nos um brilhante resumo daquilo que foi a ligação do artista a Portugal através de uma obra que está a léguas da carneirada dos livros de fotografia e viagens de então. Portugal chegou-me de França rápido, bem embrulhado e ainda com uma sobrecapa daquelas de papel transparente para precaver riscadelas na capa imaculada, como imaculada parece a figura que mora nela. 


 Marker, homem dos sete ofícios, lançou-se na empreitada de editar livros sobre lugares porque os “guias” da época lhe pareciam estafados, seguidistas e desorientadores. Para ele, o mundo do pós-guerra tinha ficado mais acessível do que nunca, mas a experiência da viagem era “ilusória”: “Vemos o mundo escapar-nos, ao mesmo tempo que nos tornamos mais conscientes das nossas ligações com ele”. Em ruptura com o que se fazia, propôs uma série que fosse “uma conversa com pessoas inteligentes e cultas”, pessoas que “estivessem bem-informadas sobre os países em questão”. No volume sobre Portugal, Franz Villier, autor do texto, põe de lado os rodriguinhos e esmera-se por não deixar nenhuma alfinetada ao acaso com críticas ao ultramontanismo, ao colonialismo e ao ditador celibatário. Isto, claro, sem nunca esquecer os pormenores (descrição dos hotéis: “Três categorias, como as prisões”). 


O extraordinário arranjo gráfico de Portugal é de Marker assim como boa parte das fotografias que desafiaram o cânone do Estado Novo (os Jerónimos surgem com um matagal à frente, a Torre de Belém com um pardieiro lamacento). Está bom de ver que a censura proibiu o livro. E nem a encantadora mulher envolta em trajes típicos na capa desviou o controlo pidesco do conteúdo. O que prova que, neste caso, eles leram e viram alguma coisa do que lá vinha estampado, não se ficaram pelo retrato de Jean Dieuzaide, que assinava com o pseudónimo de Yan, assíduo de salões em Portugal e colaborador do SNI (António Sena). 


As mulheres eram regra nas capas da série. Ao escolhê-las, Marker aposta na sua força simbólica e sedutora. Mas no caso de Portugal, esta candura até soa um bocadinho a provocação (também pelo autor escolhido). Enquanto dá uma imagem plácida e de antanho do país na capa, no miolo a pena e as objectivas são gumes afiadíssimos para tudo e todos. É caso para dizer que se se ficasse pela capa, a censura seria romanticamente ofuscada. Como eu fui quando encontrei este In Portugal (Prestel, 1961), em alemão, que traz um olhar de que não se consegue escapar.

texto retirado do blogue artephotographica

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