quinta-feira, 18 de junho de 2020

LUIS RAPOSO - OUTRO QUE NÃO EU

OS EQUÍVOCOS DA MUSEOLOGIA E DA PATRIMONIOLOGIA
LUÍS RAPOSO
2020-06-01

Entre o que me dá mais prazer do ponto de vista intelectual conta-se ver-me confrontado com a exposição argumentada e inteligente de ideias diferentes, até opostas às minhas, para depois melhor poder ou reafirmar aquilo que penso ou… mudar de ideias, porque só os burros as não mudam. E neste estimulante exercício sou muito mais levado por circunstâncias externas, sendo aí frequentemente prisioneiro da minha infinita ignorância, do que por autónoma e discricionária indagação do mundo.
Nos últimos meses, em tempo de confinamento doméstico, entre as múltiplas terapias ocupacionais que desenvolvi, contou-se também a da leitura ou releitura de textos sobre o conceito de museu digital ou museu virtual. Reforcei convicções, na maior parte dos casos. Mas alterei também formas de pensar. Um dos livros a que regressei, algo difícil, não porque esteja escrito em francês (sou da geração que o domina melhor do que o inglês), mas porque realmente está escrito de forma arrevesada, pouco atractiva até, foi o clássico (já lá vão quase duas décadas…) “Le musée virtuel”, de Bernard Deloche, filósofo com obra nas áreas da museologia e dos museus, da estética, da filosofia da arte e dos novos media. Membro activo também do ICOFOM, o Comité do ICOM para a Museologia.
Não acompanho Deloche em muitas, talvez na maior parte das suas ideias, construídas na linha da chamada “mediologia” atribuível, entre outros, a Regis Debray, que aliás faz aqui o prefácio. Não penso que seja possível, nem muito menos desejável, depurar o museu através das suas funções comunicacionais – e assim abrir espaço para um conceito imaterial de estética (e de ética também), que o museu virtual poderia ser chamado a protagonizar.
Deixemos isso, porém, ou para outra oportunidade ou simplesmente para meu deleite próprio. O que agora me importa salientar, e por isso cito esta obra de Deloche, é o capítulo em que ele, antigo e influente membro do ICOFOM, como disse, se refere aos equívocos da museologia.
Não resisto, e peço desculpa por isso, a colocar em encarte algumas passagens [ver no final deste texto], que julgo necessárias para melhor entender o argumento. Diz ele, de forma que tenho para mim clarividente, que não é possível, nem desejável científica ou sociologicamente, associar a instituição-museu à museologia. Admite que esta possa ser uma espécie de filosofia ou até uma ética (embora recrimine que na prática de muitos seja sobretudo uma moral). Mas é enfático em negar que a museologia possa ser uma ciência e menos ainda uma ciência de tendência imperial, afirmando-se como “a ciência dos museus”.
Concordo em toda a linha com esta perspectiva. No meu entender, a museologia nunca pode ser vista como uma “ciência dos museus” e muito menos “a ciência dos museus”, se por tal se quiser entender uma natureza conceptual englobante ou, o que seria pior ainda, um código de saberes e comportamentos habilitante para definir museus em geral ou estabelecer a vocação estratégica de cada museu em particular. Muito menos para os dirigir. Concebida desta forma a museologia adquire o estatuto de “metadisciplina” (Deloche), quer dizer uma disciplina de cobertura, fechada sobre o objecto museu, tornando-se legítimo perguntar (Deloche) “porque seria o museu a única instituição secundária a ver-se dotada de uma disciplina própria para a qual a instituição primaria sobre a função” (os exemplos, dos hospitais, das escolas ou das prisões são dados para mostrar o contraste, que é evidente). E a resposta dá-a também Deloche, logo de seguida: “a museologia nasceu como uma espécie de guardião moral da instituição [leia-se, do museu], e é assim que muitas vezes é entendida pelo mais retrógrado dos conservadores”.
Depois da museologia, também a patrimoniologia entrou em cena com intuitos idênticos, aplicados por agora não tanto aos museus (embora seja de prever que o mesmo carácter imperial conduza, a prazo, a idêntica tendência para ocupar todo o terreno e também o dos museus). Por agora dedica-se ao conjunto dos bens patrimoniais humanos e naturais... coisa pouca já se vê.
A escalada que das iniciais denúncias setecentistas quanto ao chamado “fetichismo do objecto” conduziu ao “fetichismo da mercadoria cultural”, argumentado por Theodor Adorno como extensão do conceito antes desenvolvido por Karl Marx, e levou ainda à chamada “cultura de casino”, ou “casino cósmico”, tal como lhe chamou George Steiner no início deste século, esta escala atingiu em cheio os museus e o património cultural em geral.
É certo que em qualquer país os museus e os sítios visitáveis são infinitamente mais do que os que se encontram no radar do mercado.
Em recente debate via Internet lembrei de memória alguns números: haverá em Portugal cerca de 600 museus (o dobro de “coisas” que assim se chamam, sem efectivamente o serem), dos quais cerca de metade poderiam ser certificados e cerca de metade desta metade já o foram efectivamente, no âmbito da Rede Portuguesa de Museus.
Quanto aos monumentos e sítios, só os classificados são cerca de 4500, dos quais a maior parte não directamente tutelados ou geridos pelo Governo. Todo este mundo passa, porém, despercebido – e na verdade nem se conhece como devia, mau grado o notabilíssimo trabalho do Observatório das Actividades Culturais – porque os focos estão dirigidos para a minoria dos que transformaram as colecções, os bens edificados ou as ruínas em “mercadoria cultural”. Estes que estão no foco deixaram-se tomar, em maior ou menor grau, ou foram obrigados a adoptar as “leis do mercado” – e são por isso os que mais sentem no imediato as consequência do colapso deste, sob a forma de sumição do turismo internacional de massas.
O “mercado” é avassalador e guloso por natureza. Está sempre à procura de novas e mais alargadas formas de “fazer dinheiro”, quer dizer colocar sob a óptica da rentabilização financeira bens e serviços antes fornecidos em regime de interacção cívica, sem aparentes custos, ou seja, com os custos gerais que implica o contrato social, regido pelo Estado – a figura agregadora e gestionária que, no ambiente em que vivemos, as sociedades humanas encontraram há quase cinco mil anos, nos vales do chamado Crescente Fértil. Por arrastamento, onde há redução do valor a dinheiro, geram-se novas oportunidades de negócio – e mesmo antes dos museus propriamente ditos foi toda a indústria que gravita em seu redor, e igualmente as escolas de formação académica, que disso se aperceberam.
O papel da universidade é neste particular especialmente relevante. Na luta pela sobrevivência foi deixando cair pouco a pouco, ou reduziu à essência mínima, as formações sólidas nos domínios científicos tradicionais, que tinham (como sempre tiveram) pouca procura. Foi assim que floresceu uma miríade de novas habilitações, baseadas em ensino "de largo espectro" e sobretudo pós-graduadas, floresta (de enganos...) que desafia a mais exuberante imaginação. Basta percorrer as listas de mestrados e doutoramentos: uma verdadeira orgia, com mais marketing, do que economia; mais relações internacionais, do que direito… mais museologia, do que belas artes, história da arte ou arqueologia. E, enfim, mais patrimoniologia (que já existe), do que geologia, química, arquitectura ou qualquer outro saber científico relevante.

No campo específico da “museologia” e do “património”, usando estas palavras como motor de busca, encontram-se no ano lectivo presente 25-mestrados - 25 de 2º ciclo [ver quadro acima]. Ele há de tudo quanto a designações, desde “Museologia” ou “Património” tout court, até perífrases que parecem procurar “meter o rossio na betesga”: Gestão do Património Cultural e Desenvolvimento Local, Gestão e Valorização do Património Histórico e Cultural, História da Arte, Património e Turismo Cultural, Museus, Património e Sociedade do Conhecimento, Património Europeu, Multimédia e Sociedade de Informação, etc. etc. Se descêssemos ao nível dos curricula, a criatividade seria ainda mais extasiante, mas depressa concluiríamos que qualquer das componentes ditas disciplinares acima indicadas se resume amiúde a uma ou duas disciplinas assinaturas de escopo generalista. Ou seja, haverá lugar e dizer-se “museólogo” ou “patrimoniólogo” porque um dia se frequentou uma cadeira, duas vá lá, porventura semestrais, sendo elas tratadas por via de regra dentro dos cânones da mais etérea cultura livresca – e nem sequer se diz teórica, para não ofender a construção teórica, tão necessária em ciência. Depois, num segundo ano de estudos, pode realizar-se uma "tese", ou "tesina" como há muito lhes chamavam os espanhóis para os antigos bacharelatos, essa comparação é ademais elogiosa para os tempos actuais, onde pouco mais se faz do que os trabalhos de muitas disciplinas do antigamente.
O que de toda a evidência parece ter passado pela cabeça de muitos responsáveis universitários, carentes de alunos e receosos dos seus próprios ganha-pão, foi a palavra de ordem de criar terapias ocupacionais dos estudantes em que nos títulos surgissem palavras sensíveis da moda, em alegre rendição à “cultura de casino”, aquela que “está a dar”. E os mais afoitos pensaram até que juntando, como comboio, esses termos todos num mesmo título, teriam mais possibilidade de sucesso.
Até agora o quadro clínico destas metáteses, e do pouco debate que originaram (pouco, porque afinal a ninguém interessa muito discuti-las e não se dá por que a academia, os potenciais empregadores ou até as associações profissionais inquiram da formação que nelas é dada), conteve-se nas poucas salas e sobretudo nos muitos corredores onde se sussurram estas interrogações. Havia, e continua a haver, boas-más razões para que assim fosse, dado que o ingresso profissional nos museus, palácios e monumentos tutelados pelo Ministério a Cultura estava, e está, virtualmente congelado há décadas, sendo deste pequeno, mas influente, universo que se poderiam esperar os sinais de (re)enquadramento da tradução das formações académicas em configurações profissionais.
Tenho para mim que nos museus e sítios patrimoniais devia haver lugar para todas as formações, as antigas e as novas. Tanto lhes faz falta um teórico do “ser museu” (se realmente o for), formado em História da Arte ou Sociologia (por exemplo), ou um gestor, formado em Economia (por exemplo). Tanto lhes fazem falta práticos no conhecimento dos fundamentos que permitem conservar metais, formados em Conservação e Restauro (porque aqui, sim, dado o carácter evidente do saber ou do não saber, há formação e graduação completa), como mediadores, formados em Ciências da Comunicação ou da Educação (por exemplos apenas). O que considero errado do ponto do vista científico e intolerável do ponto de vista sociológico é que algumas destas formações, e sobretudo as que florescem sobretudo nos títulos, mais do que nos conteúdos, possam impor-se às outras – e ainda menos quando pretendam impor perfis de direcção, escoradas em aproximações conjunturais a um qualquer poder de turno, procurando através dele refazer o mundo, projecto que todos os ditadores tiveram em seus respectivos tempos.
Ora, é precisamente isto que acaba de acontecer com a abertura de concursos para nove museus nacionais (Aviso n.º 8441-D/2020, de 29 de Maio). Claro que a abertura destes concursos universais (para funcionários públicos ou não, para portugueses ou estrangeiros) é em si mesma uma boa notícia e até pode ser elogiado em diversos aspectos: caso do ponto crucial da constituição de júris competentes e independentes (onde curiosamente muito poucos, desde logo quase nenhum dos mais consagrados, possui as formações que se pretendem privilegiar). Positiva, pois, esta abertura. Mas reveladora de dois vícios que talvez deitem tudo a perder, de tal modo que a montanha acabe no fim por parir um rato.
Um deles, que cumprirá desenvolver separadamente, é o das verbas previstas para programação. Sendo positivo que sejam apresentadas, elas relevam opções totalmente insustentáveis, que podem ser assim sumariadas: 1. Os valores indicados, seja o percentual de 10% (porquê este e não outro, sendo que idealmente a percentagem para programação corrente em qualquer museu nunca deve ser inferior a 30% do seu orçamento total), sejam os valores absolutos são manifestamente reduzidos e vão significar a continuação da doce pasmaceira do antecedente, sobretudo se for por aqui que também saiam os gastos com a conservação das colecções; 2. Correr todos por igual, os tais 10%, é um erro monumental e, no fim de contas, um reconhecimento de incompetência; nunca o tratar por igual o que é diferente constituiu bom acto de gestão e muito menos de governação; neste caso, existe pelo menos uma grande diferença entre museus, por um lado, com muito maiores necessidades de programação, e monumentos, por outro; 3. Estes valores não respeitam a lei de enquadramento, que manda distribuir solidariamente entre todas as instituições envolvidas e para efeitos de programação o bolo total das respectivas receitas próprias; nestes termos, isto estará longe de acontecer; 4. Finalmente, nada se diz sobre previsão orçamental em anos seguintes e também se omite a referência à arrecadação de receitas que excedam a previsão orçamental ou receitas angariadas em cada instituição.
O outro vício é justamente o do ditakt das formações de pós-graduação mais favorecidas pelas luzes do mercado (museologia e patrimoniologia à cabeça), relativamente às mais tradicionais, em história da arte, arqueologia, antropologia ou arquitectura, por exemplo.
Ficarão os doutores ou mestres em qualquer destas formações ditas tradicionais, que nas suas pós-graduações tenham optado por planos de estudo centrados nas suas respectivas áreas científicas, formações mais substantivas mas desprovidas das palavras-mágicas nos títulos, helàs, liminarmente excluídos de candidatura, ainda que tenham, como necessariamente terão, maior conhecimento criativo, interrogante, dos acervos dos museus e possam supletivamente reunir todas ou algumas das aptidões, experiências e competências elencadas no Aviso de Abertura? E não sendo liminarmente excluídos, serão subavaliados e finalmente preteridos? Inversamente, a formação pós-graduada que se pretende (formação e não graduação ou titulação, note-se) pode satisfazer-se com a frequência de qualquer acção desse nível, ministrada ou não em ambiente universitário e tenha que perfil tiver... desde que use as palavras-gazua convenientes?
Como se compreende não será preciso ser quiromante para antecipar grossa barbuda, com reclamações administrativas e judiciais por parte dos muitos que assim se sentirão traídos nas opções que fizeram por formações verdadeiramente científicas, coisa que nem a museologia nem a patrimoniologia são.
E cá estaremos para ver.

Luís Raposo
Presidente do ICOM Europa

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