terça-feira, 23 de junho de 2020

FERNANDO TÁVORA - Arquitecto

A todos os arquitectos que não se sentem nem génios, nem zeros, e que diariamente contribuem com a sua (mais ou menos) anónima Arquitectura - "obra feita por homens para homens".
«Durante anos eu pensei a Arquitectura como qualquer coisa de diferente, de especial, de sublime e extraterreno, qualquer coisa assim como uma intocável virgem branca, tão sublime, tão ideal que apenas a raros era dado realizá-la ou compreendê-la; o arquitecto era para mim ou o génio semidivino ou apenas um zero. Entre a pequena choupana e a mais famosa obra de Arquitectura não havia relação, como não a havia entre o pedreiro e o arquitecto. Eram coisas diferentes, desligadas. Este conceito mítico da Arquitectura e do arquitecto produzia em mim um atroz sofrimento, dado que eu não era um génio e não conseguia portanto realizar edifícios tão intocáveis como as virgens brancas.
Rodaram os anos. Vi edifícios e conheci arquitectos. Percebi que um edifício não se contém numa bela planta nem numa bela fotografia tirada em dia de sol e sob o seu melhor ângulo; verifiquei que afinal todos os arquitectos eram homens, com as suas qualidades, maiores ou menores, e com os seus defeitos, maiores ou menores. Acreditei então que a Arquitectura era sobretudo um acontecimento como tantos outros que preenchem a vida dos homens e, como todos eles, sujeita às contingências que a mesma vida implica. E a intocável virgem branca tornou-se para mim numa manifestação de vida. Perdido o seu sentido abstracto, encontrei então a Arquitectura como qualquer coisa que eu ou qualquer outro homem podemos realizar – melhor ou pior -, terrivelmente contingente, tão presa à circunstância como uma árvore com as suas raízes se prende à terra.
E o mito desfez-se. E entre a pequena choupana e a obra-prima vi que existiam relações como sei existirem entre o pedreiro (ou qualquer outro homem) e o arquitecto de génio.
Vista sob este ângulo, a arquitectura aparece-me agora como uma grande força, força nascida da Terra e do homem, presa por mil fios aos cambiantes da realidade, força capaz de contribuir poderosamente para a felicidade do meio que a vê nascer. Efeito e causa ela é deste modo uma das armas que o homem dispõe para a criação da sua própria felicidade. Procurei atender a tudo, desde os ventos que batem o local até ao uso dos materiais, desde as normas oficiais ao bem-estar físico e espiritual de alunos e professores, desde o custo da construção até à pendente do terreno, etc., etc., etc. Mas, procurando atender a tudo, procurei hierarquizar os condicionamentos e integrá-los num todo que fosse algo mais do que uma soma de partes distintas.
Como uma árvore, este edifício tem as suas raízes, dá sombra e protecção àqueles que a ele se acolhem, tem os seus momentos de beleza e, assim como nasceu, um dia morrerá depois de viver a sua vida. Não se trata, em verdade, de uma intocável e eterna virgem mas de uma pequena e simples obra feita por homens para homens.»
Fernando Távora, 1963


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