O presente texto
assenta numa palestra proferida na Midland Group Gallery em
Agosto de 1977. Quis recorrer ao Realismo porque me parece mais linear e, em
simultâneo, aparentemente antagónico, porque existem um conjunto de outros factores
que influenciam tanto aquilo que, supostamente, seria a simples função da
fotografia como representação da realidade. Oportunamente, irei desenvolver
este artigo porque me parece pertinente aprofundar, além da questão da dialéctica,
as questões que têm que ver com a contextualização e com a justificação destas
opiniões. Infelizmente, há sempre dificuldades de espaço quando se escreve para
publicações e a necessidade de se ser sucinto impera.
Redigir um texto
desta natureza, a dois, é também um desafio e a prova de que a arte também
precisa de se contradizer a ela própria. Não foi porém escolhido um qualquer
técnico ou profissional de uma qualquer área, mas sim uma pessoa ligada à
literatura, o poeta Jorge Velhote. E a escolha não foi de nenhum dos autores,
foi antes um desafio para que duas pessoas que desconhecem amplamente o
trabalho de cada uma se desafiem num espaço discursivo e a partir dele
manifestem as suas opiniões que, concordantes ou discordantes, sejam sempre
enriquecedoras. Porque me parece que este é de facto o único caminho lógico e
óbvio para as artes. Coube-me a mim começar, dando o mote e lançando o desafio
da temática. Cabe ao Jorge, a seguir, “entrar no texto” e fazer a sua
intervenção. O “sorteio” ditou assim.
É opção minha não voltar a este texto, antes de estar publicado. Gosto de
surpresas.
1. Rui Campos
Berenice Abbot, afirmou em Outubro de 1951 que “O
valor documental de uma fotografia é inerente ao próprio processo fotográfico”
e que este estava “presente em toda a
fotografia cuja imagem não estivesse falsificada com uma exagerada manipulação
técnica”.
Esta fotógrafa,
pese embora tivesse sido discípula de Man Ray, um dadaísta e surrealista, era
defensora da Straight Photography, movimento
do qual se tornou uma das principais embaixadoras. É por esta razão que a
opinião de Berenice Abbot de que a fotografia, ainda que realista e documental, depende
sempre do factor interpretativo do fotógrafo e toma uma dimensão maior porque,
aparentemente, está em contradição com os fundamentos da Straight Photography,
que é, por definição, realista e documental, portanto Straight (directa).
Segundo ela, “A objectividade do
fotógrafo não é a objectividade da câmara. É sensível com o mistério de
selecção pessoal do seu cerne”. E justifica esta afirmação com a alegação
de que tem de existir por parte do fotógrafo uma opção prévia, uma
interpretação, para que as imagens finais conservem de facto a “alma da cidade” (Berenice Abbot fotografava
maioritariamente nas ruas de Nova Iorque). Acrescentou ainda que “tem de se demorar o tempo suficiente para
produzir um trabalho expressivo”.
Em suma, segundo ela, a fotografia estava muito
além de um acto instintivo e automático. Ainda que realista, objectiva,
realizada por um processo agora digital, e automático, é impossível de
dissociar a imagem – o termo fotografia não é adequado no contexto do século
XXI – do fotógrafo. Segundo Berenice Abbot, existe uma consciência prévia em relação ao
assunto. Segundo ela, “a fotografia não é
trabalho descuidado”.
Jonh Tagg (J.T.) alega ainda que a
fotografia é um trabalho conceptual e que em nada é incompatível com o
realismo. Segundo ele, a fotografia “não
é uma representação neutra de factores pré-existentes”, existe uma “interpretação e um conjunto de estratégias
essenciais e formais prévias” à sua realização.
IMAGEM 1 - Num lugar com uma grande afluência de
turistas, aproveita-se o dia para se estar em família e conhecer novos lugares.
Assiste-se aqui a um documento que advém do trabalho de observação e construção
de uma cena por parte do fotógrafo, sensível à circunstância actual de que
vivemos cada mais isolados num mundo cheio de gente. Esta abordagem, esta
interpretação feita pelo fotógrafo em nada retira a condição realista e
documental da imagem que continua a fazer sentido ao nível do significado.
Regressando a Berenice Abbot,
ela afirmou, anos mais tarde, que o “grande
desafio do fotógrafo tem sido o de impor ordem nas coisas vistas e fornecer o
contexto visual e o quadro intelectual”. Para ela não existe contradição
entre a estética da fotografia, o seu objectivo, e a sua abordagem realista.
J.T. considera que a “arte da fotografia”
é precisamente isto.
Para Berenice Abbot “o Realismo é o resultado de um processo
construtivo elaborado ao nível do significado”. J.T. justifica esta afirmação,
alegando que “não se pode avaliar o grau
de realismo de uma representação por via da simples comparação desta com a
realidade pré-existente”.
Já Max Raphael alega que “é a linguagem que nos força a comparar o
trabalho terminado com a realidade pré-existente, e esta circunstância leva-nos
a esquecer que a obra de arte é fruto de uma interação dialética entre o
espírito formador criativo e uma situação que nos é dada à partida”. J.T.
refere em relação a esta afirmação do autor que este acredita que a distinção
entre o referente (a realidade natural), a metodologia (a mente) e o produto
final (a obra de arte) é pertinente.
IMAGEM 2 - Aproveitando a circunstância do nevoeiro, o
fotógrafo explora um motivo e opta por criar uma situação de cisão,
desequilíbrio e tensão a fim de conferir maior expressividade à imagem, que
ainda assim não deixa de ser um documento realista. A dialéctica entre o
indivíduo e a natureza é transversal e necessária. Já o público não resistirá à
comparação da forma final com a natureza original e é esta diferença, esta
cisão que confere ainda mais pertinência ao trabalho. Existe pois uma
metodologia, uma conjugação dos elementos natureza-história-indivíduo que
operam na criação da forma final.
Max Raphael acrescenta que que existe uma conjugação de
elementos (natureza - história - individuo) que torna esta situação complexa, que
estas circunstâncias não coincidem, mas antes tendem a colidir no artista e é
esta colisão entre elas e o despojar do assunto do seu carácter factual que o
transforma num problema. “O artista
resolve o problema fundindo-os numa nova unidade que se materializa numa forma
nova”.
Já em relação ao observador, Max Raphael afirma que
esta realidade, que é consequência do conflito que o artista tem com a
Natureza, a História e o Indivíduo, “é
autónoma e acessível quando este a procura interpretar de forma a poder
compreender melhor o processo que a originou.” Segundo o autor, “para o
observador não é suficiente entender o processo de criação nem apontar as
diferenças entre esta e o seu referente, este também precisa de entender de que
forma a Natureza-História-Indivíduo se combinaram como um problema que carecia
de resolução.
IMAGEM 3 - Não
se pretende fazer uma declaração a favor ou contra as lides de touros, antes
uma reflexão. O fotógrafo procurou despersonalizar a imagem e cingir-se
exclusivamente na manifestação cultural, procurando com isso toda a isenção e
procurando também evitar que se retirasse esse significado quando se
enumerassem (o que é mais que espectável quando se está em comunidades
pequenas) as pessoas que constam da imagem, polarizando o protagonismo nelas em
vez da circunstância. Encontra-se aqui facilmente a questão da
natureza-história-indivíduo e da problemática que advém do seu confronto, culminando
numa forma final que é fruto da interpretação do fotógrafo. Nem por isso esta
imagem deixa de ser um documento e que um dia mais tarde poderá inclusivamente
vir a fazer sentido utilizar numa diversidade de contextos em que importa a
descrição da manifestação em si e não a personalização desta num povo/região
específica. O fotógrafo recorreu a conhecimento prévio do trabalho de um
fotógrafo que estudara previamente para enccontrar esta forma final e que lhe
servisse os compromissos.
Para Terminar, Max Raphael afirma que “cabe ao historiador localizar
o contexto histórico específico de uma imagem em particular, o meio de
figuração, o seu modo de utilização e a motivação
específica do seu uso, bem como reconstruir o método que foi usado
na sua criação”. Acrescenta ainda que “a análise deve ser alargada ao modo como a
forma é recebida”, rematando que “é
preciso historicizar o espectador”.
Regressando a B.A., Jonh Tagg refere que se
torna pois “pertinente precisar para quem
e em que condições ela pensava que as suas imagens fotográficas seriam
realistas”. A fotógrafa refere no seu ensaio “Changing New York” que a reacção e afluência do público às suas
exposições provava a existência de uma “real
procura popular desse registo fotográfico”. Ela acreditava – e com razão,
provou o tempo – que o seu trabalho era um registo cuidadoso e fidedigno de uma
Nova Iorque em mutação constante que iria ser preservado para o futuro.
Acreditava ainda que este tipo de registo teria um imenso potencial de
utilização, quer imediata, quer a longo prazo.
IMAGEM 4 - Com esta imagem o fotógrafo pretendeu
mostrar duas perspectivas da mesma realidade. O Interior. E esta imagem retrata
a forma como um governo central vê o interior e como este está de facto. Existe
apenas uma pessoa real na imagem. Todas as outras são figuras também todas elas
estão a desenvolver um qualquer tipo de acção. A única pessoa real que consta
na imagem limita-se a caminhar e não se sabe bem para onde. Mais uma vez aqui
se encontra a conjugação dos factores natureza-história-indivíduo. Uma
problemática criada pelo seu confronto e uma forma final, o compromisso a que o
autor chegou e que em nada lhe retira a sua condição realista e documental. em
última instância um edifício degradado no centro de uma cidade, uma
circunstância infelizmente demasiado comum nesta conjuntura politica e social.
Na conjuntura
actual, a fotografia é – julgo que se pode dizer assim – escrava de uma
componente altamente tecnológica que está relacionada com o equipamento ao qual
é inerente e altamente volátil. O investimento imenso em publicidade e
marketing por parte dos fabricantes de
equipamentos relacionados com a fotografia visa criar a necessidade aparente de
rejuvenescimento do equipamento por via da sua substituição, o que colocou a
dialéctica da fotografia neste campo, e nas suas características técnicas, e
nas vantagens que este aparentemente aporta para a fotografia. Julgo que se
pode afirmar que a partir do início deste século (onde se situa a massificação
da fotografia digital), se perdeu a dialéctica humanista que uma disciplina das
artes visuais contém. Os elementos Natureza-História-Indivíduo não são
observados pelos utilizadores de equipamentos fotográficos. Não existe a
criação da problemática nem a formulação do problema. Tão pouco se tarda o
tempo necessário para que o trabalho faça sentido ou tenha significado.
A fotografia goza também de uma multidisciplinaridade
que não ajuda a situar a dialéctica no lugar certo. A História e a Geografia, a
título de exemplo, são duas ciências que recorrem diariamente à fotografia
enquanto documento. Especialistas de todas as ciências recorrem (e ainda bem),
à fotografia no âmbito dos seus trabalhos e nem por isso aqui se faz a
necessária distinção. Não é nada incomum que historiadores e geógrafos
ultrapassem as suas competências e de alguma forma se refiram à fotografia
enquanto forma de expressão artística, porém muitas vezes sem conhecimento de
facto, alicerçando as suas palavras apenas nas suas convicções, sem conceito ou
contexto.
Os autores que
refiro na primeira parte deste texto, convenientemente referindo-se ao
realismo, descrevem de uma forma que me parece perfeitamente clara que a dialéctica
actual da fotografia está completamente errada. Na prática, toda a gente tem
necessidade de situar a fotografia no campo das artes, mas não existe um
contraponto com voz suficientemente alta e objectiva que coloque a dialéctica
da fotografia no campo correcto. A palestra e os autores que referi (aconteceu
há 41 anos) provam que esta necessidade é hoje mais premente do que nunca.
Os museus gozam
hoje de uma conjuntura privilegiada para exercer este contraponto. Deixaram de
ser meros receptáculos de artefactos históricos e passaram a ser mais
interventivos nas sociedades e comunidades. Naturalmente procuram encontrar
formas exclusivas e diferenciadoras de o fazer, abordagens e dialécticas que os
distingam. Infelizmente não é demasiado comum encontrar pessoas com
responsabilidades na cultura institucional que sejam incapazes de compreender a
dialéctica da fotografia e perceber que esta tem estado cada vez mais no campo
errado. Uma dialéctica assente, como já referi, no indivíduo, no humanismo, e
não no equipamento, na técnica ou na disciplina. E muito menos nos estudos mais
ou menos académicos das ciências sociais.
Como referi já
inúmeras vezes, não se encontram pintores a fazer debates sobre pincéis,
gravadores a falar do tipo de tarlatana, escultores a referir-se ao tipo de
diamantado de um disco de corte, músicos a discutir uma marca de cordas para
uma guitarra. Estas discussões quando acontecem são efémeras, pontuais e
reservadas. O poderio económico dos fabricantes de equipamentos fotográficos
(electrónicos) insiste em colocar a dialéctica da fotografia neste campo,
procurando despertar no consumidor, recorrentemente, a necessidade de
reinvestir de forma cíclica em equipamento que dura uma vida.
Não se vê pianos, violinos ou simples palhetas à
venda ao lado de smartphones, mas, encontram-se sim nas lojas especializadas.
De repente todos
têm perfeita noção da preponderância que a fotografia tem nas suas vidas, mas
poucos são aqueles que se dão ao trabalho de olhar para ela com a honestidade e
seriedade que merece qualquer outra disciplina das artes visuais. As razões
desta circunstância estão amplamente estudadas e são sobejamente conhecidas.
Falta a acção. Falta
que os Museus, as instituições que hoje procuram – inclusivamente em alguns casos a sua
sobrevivência – encontrar no tratamento da fotografia por via da dialéctica que
ela merece, um factor de diferenciação que, para mais, goza de uma atractividade
massiva nas comunidades.
2. Jorge Velhote
Este desafio,
este câmbio e partilha de opinião, esta capacidade de entrar ou não no texto do
Rui Campos, a minha relação com a fotografia e com os fotógrafos, e comigo
mesmo como fotógrafo e poeta, originaram que regressasse a um texto de 2004,
presumindo assim, sem arrogância possível, dar ‘testemunhos da dissimulação do
caos’, aliás, título desse texto para a exposição ‘Passageira mente’, realizada
no Porto, nesse ano.
Neste sentido, as
questões que o Rui aborda, julgo, traçam uma bissectriz vigorosa que intercepta
esse meu texto na sua afasia temporal e por isso se justifica que a ele
regressasse impelido por um enigmático ou mesmo misterioso desígnio que não
dominei -- na verdade, enigmas e mistérios, também matérias de que se compõem
as fotografias. E matéria indissolúvel que materializa a literatura e as suas
obscuras máscaras. Entre a poesia e a fotografia há um testemunho que coloca a
fronteira num único lugar, a do corpo real, não ficcional, pois é aí o lugar
onde se invocam oscilando as diferentes linguagens e a sua transmissão. Perante
os que não têm linguagem, há quem aqui e agora decida falar.
Enquanto a
literatura parte do real afastando-se da realidade, a fotografia parte do
momento de observação para nos aproximar da realidade passada fazendo com que
penetremos o real. E estamos assim perante o testemunho como transformação e
vestígio e uso do que podemos considerar como estilhaços do representável. Os
fragmentos, literários e fotográficos, e a sua dicotomia e conciliação,
permitem-nos reconfigurar a dialéctica da ambiguidade da realidade. E aí, só
aparentemente, permanecer. E ambas, poesia e fotografia, num todo complementar
arquitectam o cenário e a encenação do eu ficcional que se exprime e
materializa em permanente deslocação dramática – o eu performático é uma
simbiose de instantes e estilhaços em deformação volátil reduzindo o tempo a um
fora de lugar e onde o corpo é esse único lugar possível onde a representação
do real pode acontecer. E tudo assim se conjuga para que esse acontecimento,
poético ou fotográfico, tenha um destino, um leitor espectador virtual ou
diferido como se texto ou imagem permitissem a deslocação do corpo testemunhal
para um corpo obliterado.
Um
olhar é um relâmpago que une iludindo a escuridão. Uma metástase em acelerada
decomposição orgânica e torrencial.
O que
é que um fotógrafo vê – o que vemos – e o que nos mostra?
Objectivamente
(a palavra permite uma imediata aproximação ao campo técnico da fotografia), o
fotógrafo utiliza a tecnologia para ver ainda de uma outra forma. Mas, esse
momento de olhar é já um posterior momento subjectivo que a máquina captará
para, posteriormente, poder ser utilizado.
Estamos
assim no campo técnico, do uso do saber fazer, plano em que a consciência do
acto imperativo é colocado entre parênteses e em que a execução é já vector
essencial e de manifesta natureza reflexiva para que a forma de um olhar seja
possível de ser visto.
A
máquina é um mediador manipulável, e a matéria de que se fazem as fotografias
um catalisador abstracto do pensamento: – aquele que olha, o espectador,
adquiri aqui um papel de participante activo, reflexivo, uma consciência que o
arrasta para um lado improvável, é como se o seu olhar, suspenso, fosse o
acesso desejável para a configuração dos instantes, um hiato entre relâmpagos,
um pacto ficcional, uma táctica da incredulidade, um imaginário narrativo em
que fotógrafo e espectador fingem a experiência de uma verdade e se vestem de
ambas as personagens.
A
pura causalidade, a espessura do tempo, o rigor da ignorância do espectador que
o fotógrafo vai usar desenham um sistema de caixilhos, são a passagem de uma
visão interna para uma visão externa, a criação de uma linguagem fictícia, o
uso do erro e da ilusão são, deliberadamente, uma dissimulação sem moral nem
simetria – o particular é uma instância que forra de pele a substância e o meio
de uma linguagem criativa e real e em que a apropriação que o olhar permite não
se restringe a conjuntos de regras puramente mecânicas e técnicas nem a
inoperantes observações, mas sim, a um extenso e intenso câmbio de olhares
complementares e cúmplices, mesmo que adversos ou repugnantes.
Como
sustentar um olhar que fixa acontecimentos efémeros? Como hierarquizar o
essencial, o que não é suspeito, o expressivo racional? Que bússola ilude e
orienta os mistérios? Que luz multiplica o nosso olhar entre penumbras? – é
perturbante e rigoroso o jogo múltiplo do que se expõe, subtilezas complementares,
engrenagens abismais e metamorfoses intemporais que rompem os limites do medo e
da condição das imagens e da transcendência dos fulgores dos prodígios e das
encenações –, são fronteiras mecânicas que dividem a precisão do equilíbrio das
metáforas e da sedução. Explícitas emocionalidades que implicam a
comunicabilidade como se o tempo deambulasse e, em rigor, nos projectasse para a visitação do
real e da memória.
O que
é visível e nos fascina – a exuberância da realidade que transfiguramos como
espectadores num horizonte de ausências recuperadas como sequência narrativa,
como linguagem cénica, génese imperceptível de uma luz que amplifica e mutila
as costuras da imaginação –, introduz o medo, um jogo de gramáticas e angústias
metafísicas, um objecto de direito, liberdade e ironia.
A
fotografia apresenta-se hoje numa dupla função necessária, representa a
realidade, as suas categorias, é sua expressão e é relativamente autónoma e
adquiri formas que não determinam o próprio conteúdo do que tornam eficaz: com
efeito, a fotografia, o olhar, remete para a vontade livre, para a ilusão, para
a fusão entre o querer do fotógrafo e o poder do espectador, entre cenários
letalmente transitivos, são gestos que engendram inscrições, espaços
inomináveis, transbordantemente polifónicos de uma semiologia política e
cintilantemente intemporal.
Neste
contexto, actual, diria quase diário, a obra fotográfica adopta técnicas de
representação específicas e aporta outras de áreas criativas distintas, como a
literatura, a escultura, o teatro, a dança, a performance, e até da ciência, e
coloca-se no terreno da conjuntura de um progressivo apagamento visando a
dessacralização e coloca o espectador na condição de romper com molduras que
propõem uma maior capacidade de reflexão sobre o seu tempo, a originalidade e a
autenticidade.
Mas,
também, para o descarnamento da realidade objectiva que o fotojornalismo
comporta e disponibiliza, arriscando tantas vezes, como informação, dor e
ferida.
A
fotografia, ou será mais ajuizado dizer, as fotografias, não condicionam um
caminho para o limite, mas para a vertigem, para o entranhado plástico e
teórico de uma arquitectura que cicatriza o saber, rompem para a consciência da
dor e da fragilidade, para o secreto silêncio que se retrata na cenografia
inviolável da intimidade – o seu destino é a luz, a lucidez, a encenação do
sonho e da inevitável carne.
Um
bosque de relâmpagos e uma encruzilhada de veredas a descobrir no labirinto a
percorrer é a chave para unir o laço indissolúvel entre o espectador e as
fotografias.
Íntimos
dos caminhos e da cegueira, em trânsito penoso e infiel, com que palavras
descrever o tangível, testemunhar o caos, a raridade do que subsiste misterioso
e infindável – passageiramente.
O que
escutam os fotógrafos quando lêem – o que vêem?
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