Não seria justo que, numa abordagem às produções marginais, àquelas produções das margens da literatura ou dos géneros do escrito, esquecêssemos as narrativas chamadas pornográficas.
Da anedota popular e brejeira até ao “espaço que nele é, simultaneamente, uma mimesis puramente auditiva, confiada à narrativa do historiador, e de uma praxis, de Sade (Sade, Fourier, Loyola, Roland Barthes, Paris, Seuil, 1971, p. 150), a pornografia existe (por vezes, constituindo um tema absorvente e exclusivo, por vezes um elemento predominante da obra, de forma eminente, fascinante) e, contudo, é quase sempre rasurada, absorvida por esquecimento, por um adiamento que é tanto mais irritante quanto ela se torna omnipresente em quase todos os horizontes do que se chama erotismo, literatura “séria”, abjeccionismo ou narrativa romanesca.
Os discursos de reconhecimento, aberto e liberal, passa, nesses casos, por uma obsessiva indicação de velados efemismo e litotes (ah, como a linguagem dos libertinos triunfa aí, impondo secretamente o seu estilo), por vezes freudiza a hermenêutica ao ponto de encontrar homossexuais e perversos por todos os recantos do segredo, mas vela essas evidências por uma racionalidade casta, deixando à palavra incómoda (a obscenidade, o insulto, a nomeação marcada do elemento sexual, escatológico), o outro lado da fronteira, o território dos bárbaros, o espaço onde se fala a língua proibida, onde se agitam os corpos do prazer pagão.O que nos interessa
aqui revelar, como literatura pornográfica marginal, é a menos clara
manifestação de texto efabulado tendo como principal tema a sexualidade,
manifestando-a, obcecadamente, como prática permanente da acção da
personagem. Não a ocorrência casual uma entre outras da vida, como, por
exemplo, a cena “realista” num romance de costumes, mas como função cardinal de
uma sequência em que a tónica desse fazer sexual é constante, constituindo uma
espécie de macrofunção a que poderíamos chamar “variação infinita do orgasmo”.
Desse modo,
poderíamos considerar pornografia o discurso sobre o sexo carregado com a
alegria expulsiva e explosiva da palavra certa, atendendo a que a palavra
certa da pornografia é a que agride os costumes oficializados da mesma forma
que o desvelamento do órgão, ou do acto realizado, nomeado.
Não vamos aqui
explorar detidamente qual a função de tal literatura. Ela sempre existiu independentemente
de qualquer explicação e justificação. Adiantemos, contudo, que, muito
intuitivamente, o texto pornográfico nos parece cumprir a função de todos os
mitos ontogenéticos (sociais e individuais): falar à nossa racionalidade,
instituindo um dizível, sobre aquilo a que a razão e o logos (na sua
vertente mais evidentemente epistémica) não acedem.
De certo modo, todo o
paradoxal e obsessivo da pornografia (e sobretudo a menos culturalizada –
estamos mesmo a evocar a mais popular, a que anda em edições de cordel, pelos
vendedores de rua, em brochuras dactilografadas) está em que substitui um fazer
do desejo, por um dizer ou um dizer o fazer do desejo que aparentemente nunca é
realizado. Poderíamos mesmo conjecturar, recorrendo a exemplos de escritores
clássicos que foram metidos no mesmo saco genérico de libertinos, que a pornografia
começa onde o devaneio ou mesmo o delírio de Sade substitui o erotismo
realista de Laclos ou de Restif de La Bretonne.
Explorando os poucos
saberes sobre tão descuidado tema, talvez não fosse demasiado ousado propor
como hipótese de trabalho uma indagação da pornografia tendo como orientação
a ideia de que a pornografia, contrariamente a algumas opiniões apressadas, está
francamente do lado do fantástico (característica de quase tudo o que é
marginal) e não de um possível realismo exacerbado ou ultra. Nada menos
pornográfico do que um texto naturalista, por exemplo.
Assim como o herói
estereotipado da grande aventura fantástica é previsível quase até à caricatura
na realização das suas acções de reposição da ordem, o protagonista
pornográfico é evidente até à transparência no seu percurso do prazer: cada
contacto que inicia, cada conversa que tem, cada acto que pratica só pode ter
um sentido – o orgasmo. E o orgasmo não tem limites no herói da história
pornográfica, tal como o super-homem das histórias de reparação não tem.
O importante, para
este aventureiro do prazer, é conseguir mais uma relação, conquistar mais um
objecto do mundo da sensualidade, inscrever mais um (ou uma) parceiro na sua
lista de relações. Não se trata, neste caso, de um exercício de sedução, de
manifestação do poder, de uma expansão de um encanto narcisicamente posto a
funcionar e sempre a pôr-se à prova.
Esse aventureiro (ou
aventureira) é típico da mentalidade libertina, aparece na narrativa dos
escritores libertinos do século XVIII e tem como grande modelo um Casanova, um
Valmont. O herói da pornografia só muito raramente é um sedutor no sentido
próprio do termo. Movendo-se num cenário de devaneio, fantástico, para ele o
mundo está sempre cheio de corpos passíveis cuja abordagem é tão simples como
respirar.
Por uma razão muito
pouco elaborada, o homem cai sempre num meio onde as mulheres estão cheias de
cio, são acessíveis a todo o tipo de solicitação e abrem-se-lhe a todas as
investidas. Contudo, devemos reconhecer que, um pouco mais verosimilmente,
muitas das aventuras sexuais pornográficas, embora manifestem um imaginário
de predominância masculino, de visão erótica normalmente assumida pelo homem,
apresentam como protagonistas mulheres.
O próprio Sade tem a
sua grande personagem problemática em Juliette. As razões para essa escolha
são óbvias: não só os objectos sexuais masculinos são muito mais acessíveis à
aventura rápida e inconsequente que a série de feitos da pornografia exige,
como a mulher-sujeito é capaz de uma fiada de triunfantes assaltos que na acção
viril se tornaria inverosímil ou excessivamente fantasiosa. Com a protagonista
mulher afasta-se um fantasma do pavor masculino: a impotência da infinita
repetição… ao mesmo tempo sempre desejada e sempre negada pelo saber sobre a
realidade dos limites.
Na história
pornográfica, a relação amorosa é entendida como contacto do corpo, como penetração,
como orgasmo, quer de modo directo quer alusivo ou simbólico, mas fazendo
ressaltar a dimensão do escândalo em relação à moral vigente. É claro que
o primeiro procedimento é muito mais duradouro: Sade ainda é escândalo, mas
o Roman de la Rose pode ser estudado hoje como uma qualquer história
de amor alegórica.
A paixão, se nela
existe, é dos actos sexuais, que se objectualizam até secundarizarem os
parceiros. Daí, normalmente, o outro desmultiplicar-se infinitamente, quer pelo
aparecimento da orgia em que a variação dos corpos se dá em simultâneo, ou
pelo menos in presentia (o que permite actualizar um outro
elemento fundamental do pornográfico: o olhar que espreita – o do
terceiro que vê), quer pelo percurso-rota, ao longo do qual o ou a
protagonista vai conhecendo novos corpos de objectualização do desejo.
A palavra ou desenho
são o veículo ideal para a transmissão da fábula pornográfica. Com o cinema,
pelo estatuto de realismo que normalmente neste assume o acto sexual, o
aspecto fantástico ou maravilhoso da pornografia perde-se. Pelo menos no
registo em que o pornográfico tem surgido, em regime de série B, a expressão
da sexualidade como pornografia fica diminuída. Em compensação, a palavra, o
desenho das histórias aos quadradinhos, permitem o desenrolar da imaginação,
a singularizaçãodo pormenor, a sugestão do mais extraordinário acto, que o
cinema tem dificuldade em recriar.
Por outro lado, a
experiência subjectiva que é o orgasmo, a forma de o sentir, a localização da
zona erógena de origem, tudo isso exige uma aproximação uma ampliação e uma
identificação, sem perda, ao mesmo tempo, do todo do corpo, que o cinema tem
dificuldade em conseguir. Tornando visíveis os corpos, o cinema cria a alteridade
da vivência e, em simultâneo, a identificação do prazer por parte do espectador
desaparece, entra-se no campo da escoptofilia pura, na abdicação do corpo
próprio e do devaneio pelo percurso da identificação, e assume-se a demarcação
do olhar pela revelação de uma relação real, alheia, surpreendida pelo “buraco
da fechadura”.
A literatura e a BD,
pela perda do estatuto de presentificação do estar lá, apelam muito mais ao
devaneio do leitor, à recriação dos corpos pela fantasia (por vezes a
descrição dos corpos é tão ambígua que cabe lá
qualquer figura)e, no caso da BD, a uma hiperbolização das poses e das
partes do corpo, de tal forma forte que a ligação ao plano do fantástico se
torna a solicitação maior – quando não é o desenvolvimento de uma paródia
libertadora em torno do eros.
Desse ponto de vista,
a pornografia pode ser, no caso de alguma literatura e de alguma BD, um
convite extremamente libertador, o que o cinema pornográfico normalmente não é
pelo seu pendor meramente escoptófilo.
Pela intensidade
corpórea do erotismo pornográfico, a literatura aproxima-se, evidentemente,
da produção grotesca, da linhagem ousada do abjeccionismo literário, do
horizonte da piada obscena, da anedota grosseira, de todos os processos de libertação
pela palavra. O palavrão, a obscenidade, o uso dos
termos próprios para designar os órgãos sexuais, o processo escatológico
de referência ao corpo, aproximam muito a pornografia da festividade pagã e
carnavalesca de que nos fala Bakhtine a propósito de Rabelais, ou os historiadores
da cultura e das mentalidades a propósito do Carnaval ou do “riso pascal”.
O realismo que
muitas vezes se louva em tais expressões é, convenhamo-lo, bem carregado de
uma fantasia delirante em direcção a uma utopia, à busca de um paraíso
perdido: o da infância do corpo inocente e carregado de apelos eróticos ou,
mais genericamente, a uma inocência da espécie, do lado da natureza, num
primitivismo de todos os consentimentos.
Não se segue daí que
o escritor pornográfico seja vítima de uma ilusão inocente de retorno à vida
primitiva. O que a pornografia equaciona muito bem, com uma exemplaridade que
poucas outras temáticas artísticas conseguem, é a relação do animal que cada
um de nós comporta com a cultura que o envolve.
Se o silenciamento
do animal, do primitivo é a prefiguração da morte, a melancolia e o acinzentar
dos sentidos, a pornografia é a proposta da coloração da vida, do primitivo,
do pulsional mais imediato. E as figuras do pensamento, os tropos de
alongadas imagens que ela recria, não são as de um local idílico, mais ou
menos amoenus, ou ajardinado e, simultaneamante, mais ou menos
ameaçado pelo horrendo ou selvático, onde tudo se passaria segundo os
princípios da “madre natureza”: são, sim, as de um júbilo dos sentidos, os de
uma fruição feroz e egoísta, que tem a ver com o corpo e só com ele – onde a
cultura aparece como fantasia em acréscimo ao corpo, recusando à sexualidade a
finalidade procriativa, fazendo variar o acto num prodigioso exercício de
negação da Natureza para melhor a afirmar no plano do imaginário.
A quadrinização
de Juliette, de Sade, apareceu agora em edição de bolso, em França,
devendo-se a adaptação a Philippe Cavell e Francis Leroi.
Apolline no Inferno, de Jean-Louis Vilier e Caprichos de Uma Noite, de Daniel Lebordais, Fragmentos Editora, respectivamente 1988 e 1987
De momento, são estas
as duas únicas obras pornográficas de ficção, relativamente actuais e com
qualidade de escrita, apresentando-se como traduções de bom nível do texto
francês, acessíveis no nosso mercado.
Ao que parece, após
uma oportunista inflação de obras “eróticas” com capas a condizer e avisos a
confirmar uma piscadela de olho ao público adulto que comprava pornografia
estimulante sob capa cultural de “erotismo” para apresentar pornografia, onde
na qual circulou Sade em edições pouco mais que selvagens, onde Apollinaire apareceu
traduzido em exemplares encerrados em embalagem de plástico, a moda deixou de
produzir lucro fácil.
Os costumes não se
abrandaram, ou melhor, a leitura da pornografia ou do “erotismo forte, para adultos”
revelou agredir preconceitos muito mais profundos do que as simples proibições
de tipo policial. Essas obras, porque não resistiram num mercado livreiro
normal, acabaram por ser remetidas para os alfarrabistas de rua, para os
cordéis onde circulam já alguns “clássicos” dactilografados e policopiados…
textos terrivelmente estropiados e revelando mão-de-obra do mais baixo nível,
de obras que fizeram moda em épocas de proibição, tais como Zaza
Diabólica ou A Marca dos Avelares…
Os dois livros que
agora apresentamos, embora no melhor estilo pornográfico, procuram ir contra
tal estado de coisas – capas discretas, texto cuidado e um certo sentido da
elegância, do “saber fazer” narrativo que dá encanto aos
percursos demoníacos que apresentam.
Apolline no
Inferno, como tema fundamental, apresenta a busca desesperada de duas mulheres
(mas não busca sentida, em algum momento, como degradante) dos prazeres da
carne, num antro de jogos eróticos em que elas são as únicas parceiras lançadas
para a satisfação dos desejos de um grupo de homens de aspecto ameaçador,
revelando o encanto dos traços da estranheza social, das marcas do vício, da
postura da brutalidade.
Apolline
no inferno foi editado em Portugal em 1988.
Atendendo a que a
heroína e principal incitadora é casada, temos o quadro da ruptura com os
padrões fortemente evidenciada.
Caprichos de Uma
Noite, quanto a nós, é uma história ainda mais sofisticada que a
anterior.
Além de apresentar
todas as insubmissões que já apontámos no outro livro – a relação extra-conjugal,
sobretudo a da mulher, o sexo em grupo, a busca do prazer pela personagem feminina
–, esta história revela ainda um outro factor de aliciação: o percurso da
mulher numa noite de Paris e dos seus arredores, acompanhada à distância, pelo
olhar fascinado do seu amante que actua como um espectador, mudando
permanentemente de parceiros.
O gosto com que está
escrita a história, a qualidade que consegue imprimir à narração de sequências
normalmente encaradas de mau gosto, fazem deste livro uma obra muitíssimo
agradável e de leitura nada chocante.
O que ressoa sempre,
no horizonte desta história, na dimensão do percurso físico (onde a
outra, Apolline no Inferno, era a obsessiva repetição do cenário do
pôr em palco o sexo, numa boa aprendizagem de Sade), é a aventura da busca
– há, efectivamente, qualquer coisa de Quête no deambular
programado de Sylvie, pelas noites da cidade, pelos antros do prazer, pelas moradas
da existência liberal e libertina.
O que se pretende
descobrir nesta viagem ao fim da noite pela estrada dos sentidos é a
dimensão suprema do amor do casal que acaba por ser alcançado pela heroína e
pelo seu amante-comparsa.
Carlos Jorge
Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
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