quinta-feira, 28 de julho de 2022

PORNOGRAFIA - UM TEXTO DE CARLOS JORGE FIGUEIREDO JORGE

 Não seria justo que, numa abordagem às produções marginais, àquelas produções das margens da literatura ou dos géneros do escrito, esquecêssemos as narrativas chamadas por­nográficas.

Da anedota popular e brejeira até ao “espaço que nele é, simultaneamente, uma mime­sis puramente auditiva, confiada à narrativa do historiador, e de uma praxis, de Sade (Sade, Fou­rier, Loyola, Roland Barthes, Paris, Seuil, 1971, p. 150), a por­nografia existe (por vezes, cons­tituindo um tema absorvente e exclusivo, por vezes um elemento predominante da obra, de forma eminente, fascinante) e, contu­do, é quase sempre rasurada, ab­sorvida por esquecimento, por um adiamento que é tanto mais irritante quanto ela se torna om­nipresente em quase todos os ho­rizontes do que se chama erotis­mo, literatura “séria”, abjeccionismo ou narrativa romanesca.

Os discursos de reconhecimento, aberto e liberal, passa, nesses ca­sos, por uma obsessiva indicação de velados efemismo e litotes (ah, como a linguagem dos liber­tinos triunfa aí, impondo secre­tamente o seu estilo), por vezes freudiza a hermenêutica ao pon­to de encontrar homossexuais e perversos por todos os recantos do segredo, mas vela essas evi­dências por uma racionalidade casta, deixando à palavra incó­moda (a obscenidade, o insulto, a nomeação marcada do elemen­to sexual, escatológico), o outro lado da fronteira, o território dos bárbaros, o espaço onde se fala a língua proibida, onde se agitam os corpos do prazer pa­gão.

Sem pretensões de muita origi­nalidade, sem abdicarmos da abertura ao que, aberrantemen­te, vem sendo velado ou esqueci­do, por outro lado, parece-nos oportuno lembrar aqui, especifi­camente, essa margem. É claro que, no lugar que assumimos, não pretendemos chamar a nós uma obra como a de Sade – se por razões óbvias da sua força, ele será sempre um modelo de re­ferência revigorante, também é certo que, pelo peso que assumiu na civilização ocidental o lugar de escritor entre os “libertinos” do século XVIII nunca lhe poderá ser recusado. Deixando-o lá, mais fácil nos é evocá-lo como topos ecuménico de todos os cri­mes da linguagem irradiando, não obstante a estranheza, no in­terior do território do mesmo.

O que nos interessa aqui reve­lar, como literatura pornográfica marginal, é a menos clara manifestação de texto efabulado ten­do como principal tema a sexua­lidade, manifestando-a, obceca­damente, como prática perma­nente da acção da personagem. Não a ocorrência casual uma en­tre outras da vida, como, por exemplo, a cena “realista” num romance de costumes, mas como função cardinal de uma sequência em que a tónica desse fazer sexual é constante, constituindo uma espécie de macrofunção a que poderíamos chamar “variação infinita do orgasmo”.

Desse modo, poderíamos con­siderar pornografia o discurso sobre o sexo carregado com a alegria expulsiva e explosiva da palavra certa, atendendo a que a palavra certa da pornografia é a que agride os costumes oficiali­zados da mesma forma que o desvelamento do órgão, ou do acto realizado, nomeado.

Não vamos aqui explorar deti­damente qual a função de tal lite­ratura. Ela sempre existiu inde­pendentemente de qualquer ex­plicação e justificação. Adiante­mos, contudo, que, muito intuiti­vamente, o texto pornográfico nos parece cumprir a função de todos os mitos ontogenéticos (so­ciais e individuais): falar à nossa racionalidade, instituindo um dizível, sobre aquilo a que a razão e o logos (na sua vertente mais evidentemente epistémica) não acedem.

De certo modo, todo o paradoxal e obsessivo da porno­grafia (e sobretudo a menos cul­turalizada – estamos mesmo a evocar a mais popular, a que an­da em edições de cordel, pelos vendedores de rua, em brochuras dactilografadas) está em que substitui um fazer do desejo, por um dizer ou um dizer o fazer do desejo que aparentemente nunca é realizado. Poderíamos mesmo conjecturar, recorrendo a exem­plos de escritores clássicos que foram metidos no mesmo saco genérico de libertinos, que a por­nografia começa onde o deva­neio ou mesmo o delírio de Sade substitui o erotismo realista de Laclos ou de Restif de La Bre­tonne.

Encarado nessa óptica, o pornográfico de Sade aponta­-nos, ainda que pelo caminho do terror gótico, para o campo do fantástico. Por outro lado, os inquéritos sobre a pornografia re­velam-nos que ela funciona, so­bretudo, como estimulante indi­vidual, quase sempre como re­curso onânico da busca do pra­zer. Só raramente, por revelação do prazer, indirectamente, é estimulante da re­lação sexual tendo em conta o outro, a dimensão heterossexual (e restaria ainda descobrir o mais complicado campo da pornogra­fia homossexual – ocultação dentro do oculto).

Explorando os poucos saberes sobre tão des­cuidado tema, talvez não fosse demasiado ousado propor como hipótese de trabalho uma inda­gação da pornografia tendo co­mo orientação a ideia de que a pornografia, contrariamente a algumas opiniões apressadas, es­tá francamente do lado do fan­tástico (característica de quase tudo o que é marginal) e não de um possível realismo exacerbado ou ultra. Nada menos pornográ­fico do que um texto naturalista, por exemplo.

Assim como o herói estereoti­pado da grande aventura fantástica é previsível quase até à cari­catura na realização das suas ac­ções de reposição da ordem, o protagonista pornográfico é evi­dente até à transparência no seu percurso do prazer: cada contac­to que inicia, cada conversa que tem, cada acto que pratica só po­de ter um sentido – o orgasmo. E o orgasmo não tem limites no herói da história pornográfica, tal como o super-homem das his­tórias de reparação não tem.

O importante, para este aventu­reiro do prazer, é conseguir mais uma relação, conquistar mais um objecto do mundo da sensualida­de, inscrever mais um (ou uma) parceiro na sua lista de relações. Não se trata, neste caso, de um exercício de sedução, de manifes­tação do poder, de uma expan­são de um encanto narcisicamen­te posto a funcionar e sempre a pôr-se à prova.

Esse aventureiro (ou aventureira) é típico da men­talidade libertina, aparece na narrativa dos escritores liberti­nos do século XVIII e tem como grande modelo um Casanova, um Valmont. O herói da porno­grafia só muito raramente é um sedutor no sentido próprio do termo. Movendo-se num cenário de devaneio, fantástico, para ele o mundo está sempre cheio de corpos passíveis cuja abordagem é tão simples como respirar.

Por uma razão muito pouco elabora­da, o homem cai sempre num meio onde as mulheres estão cheias de cio, são acessíveis a to­do o tipo de solicitação e abrem­-se-lhe a todas as investidas. Contudo, devemos reconhecer que, um pouco mais verosimil­mente, muitas das aventuras se­xuais pornográficas, embora ma­nifestem um imaginário de pre­dominância masculino, de visão erótica normalmente assumida pelo homem, apresentam como protagonistas mulheres.

O pró­prio Sade tem a sua grande per­sonagem problemática em Juliet­te. As razões para essa escolha são óbvias: não só os objectos se­xuais masculinos são muito mais acessíveis à aventura rápida e in­consequente que a série de feitos da pornografia exige, como a mulher-sujeito é capaz de uma fiada de triunfantes assaltos que na acção viril se tornaria inverosímil ou excessivamente fantasio­sa. Com a protagonista mulher afasta-se um fantasma do pavor masculino: a impotência da infinita repetição… ao mesmo tempo sempre desejada e sempre negada pelo saber sobre a realidade dos limites.

Na história pornográfica, a re­lação amorosa é entendida como contacto do corpo, como pene­tração, como orgasmo, quer de modo directo quer alusivo ou simbólico, mas fazendo ressaltar a dimensão do escândalo em relação à moral vigente.  É claro que o primeiro procedimento é muito mais duradouro: Sade ainda é escândalo, mas o Roman de la Rose pode ser estudado hoje como uma qualquer história de amor alegórica.

A pai­xão, se nela existe, é dos actos se­xuais, que se objectualizam até secundarizarem os parceiros. Daí, normalmente, o outro desmultiplicar-se infinitamente, quer pelo aparecimento da orgia em que a variação dos corpos se dá em si­multâneo, ou pelo menos in pre­sentia (o que permite actualizar um outro elemento fundamental do pornográfico: o olhar que es­preita – o do terceiro que vê), quer pelo percurso-rota, ao lon­go do qual o ou a protagonista vai conhecendo novos corpos de objectualização do desejo.

A palavra ou desenho são o veículo ideal para a transmissão da fábula pornográfica. Com o cinema, pelo estatuto de realis­mo que normalmente neste assu­me o acto sexual, o aspecto fan­tástico ou maravilhoso da porno­grafia perde-se. Pelo menos no registo em que o pornográfico tem surgido, em regime de sé­rie B, a expressão da sexualidade como pornografia fica diminuída. Em compensação, a palavra, o desenho das histórias aos qua­dradinhos, permitem o desenro­lar da imaginação, a singularizaçãodo pormenor, a sugestão do mais extraordinário acto, que o cinema tem dificuldade em re­criar.

Por outro lado, a experiência subjectiva que é o orgasmo, a forma de o sentir, a localização da zona erógena de origem, tudo isso exige uma aproximação uma ampliação e uma identificação, sem perda, ao mesmo tempo, do todo do cor­po, que o cinema tem dificuldade em conseguir. Tornando visíveis os corpos, o cinema cria a alteri­dade da vivência e, em simultâneo, a identificação do prazer por parte do espectador desapa­rece, entra-se no campo da es­coptofilia pura, na abdicação do corpo próprio e do devaneio pelo percurso da identificação, e assume-se a demarcação do olhar pe­la revelação de uma relação real, alheia, surpreendida pelo “buraco da fechadura”.

A literatura e a BD, pela perda do estatuto de presentificação do estar lá, ape­lam muito mais ao devaneio do leitor, à recriação dos corpos pe­la fantasia (por vezes a descrição dos corpos é tão ambígua que ca­be lá qualquer figura)e, no caso da BD, a uma hiperbolização das poses e das partes do corpo, de tal forma forte que a ligação ao plano do fantástico se torna a so­licitação maior – quando não é o desenvolvimento de uma paródia libertadora em torno do eros.

Desse ponto de vista, a pornografia pode ser, no caso de alguma literatura e de al­guma BD, um convite extrema­mente libertador, o que o cinema pornográfico normalmente não é pelo seu pendor meramente es­coptófilo.

Pela intensidade corpórea do erotismo pornográfico, a litera­tura aproxima-se, evidentemen­te, da produção grotesca, da li­nhagem ousada do abjeccionismo literário, do horizonte da piada obscena, da anedota gros­seira, de todos os processos de li­bertação pela palavra. O pala­vrão, a obscenidade, o uso dos termos próprios para designar os órgãos sexuais, o processo esca­tológico de referência ao corpo, aproximam muito a pornografia da festividade pagã e carnavales­ca de que nos fala Bakhtine a propósito de Rabelais, ou os his­toriadores da cultura e das men­talidades a propósito do Carna­val ou do “riso pascal”.

O realis­mo que muitas vezes se louva em tais expressões é, convenhamo­-lo, bem carregado de uma fan­tasia delirante em direcção a uma utopia, à busca de um paraíso perdido: o da infância do corpo inocente e carregado de apelos eróticos ou, mais genericamente, a uma inocência da espécie, do lado da natureza, num primiti­vismo de todos os consentimen­tos.

Não se segue daí que o escritor pornográfico seja vítima de uma ilusão inocente de retorno à vida primitiva. O que a pornografia equaciona muito bem, com uma exemplaridade que poucas ou­tras temáticas artísticas conse­guem, é a relação do animal que cada um de nós comporta com a cultura que o envolve.

Se o silen­ciamento do animal, do primiti­vo é a prefiguração da morte, a melancolia e o acinzentar dos sentidos, a pornografia é a pro­posta da coloração da vida, do primitivo, do pulsional mais ime­diato. E as figuras do pensamen­to, os tropos de alongadas ima­gens que ela recria, não são as de um local idílico, mais ou menos amoenus, ou ajardinado e, simultaneamante, mais ou menos ameaçado pelo horrendo ou selvático, onde tudo se passaria segundo os princípios da “madre natureza”: são, sim, as de um júbilo dos sentidos, os de uma fruição feroz e egoísta, que tem a ver com o corpo e só com ele – onde a cul­tura aparece como fantasia em acréscimo ao corpo, recusando à sexualidade a finalidade procriativa, fazendo variar o acto num prodigioso exercício de negação da Natureza para melhor a afir­mar no plano do imaginário.

Nota finais

A História de O (de Pauline Rage – pseudónimo de um es­critor, ou de vários, de grande vulto na literatura francesa, su­põe-se…, que nunca quiseram desfazer a mascarada literária), desenhada pelo famoso autor italiano de BD Guido Crepax, chegou a ser editada entre nós…, mas a sua edição (ou o que dela resta) anda à venda pelas ruas, a preço de mercadoria sem público.



Historia de O, por Guido Crepax, em edição da Marginália de 2006. Uma edição dos anos 70, pela Sérgio Guimarães tinha duas páginas censuradas.

A quadrinização de Juliette, de Sade, apareceu agora em edi­ção de bolso, em França, deven­do-se a adaptação a Philippe Ca­vell e Francis Leroi.

Apolline no Inferno, de Jean-Louis Vilier e Caprichos de Uma Noite, de Daniel Lebordais, Fragmentos Editora, respectiva­mente 1988 e 1987

De momento, são estas as duas únicas obras pornográficas de ficção, relativamente actuais e com qualidade de escrita, apresentando-se como traduções de bom nível do texto francês, acessíveis no nosso mercado.

Ao que parece, após uma oportunista inflação de obras “eróticas” com capas a condizer e avisos a confirmar uma pisca­dela de olho ao público adulto que comprava pornografia esti­mulante sob capa cultural de “erotismo” para apresentar por­nografia, onde na qual circulou Sade em edições pouco mais que selvagens, onde Apollinaire apa­receu traduzido em exemplares encerrados em embalagem de plástico, a moda deixou de pro­duzir lucro fácil.

Os costumes não se abrandaram, ou melhor, a leitura da pornografia ou do “erotismo forte, para adultos” revelou agredir preconceitos muito mais profundos do que as simples proibições de tipo poli­cial. Essas obras, porque não re­sistiram num mercado livreiro normal, acabaram por ser reme­tidas para os alfarrabistas de rua, para os cordéis onde circu­lam já alguns “clássicos” dactilo­grafados e policopiados… textos terrivelmente estropiados e reve­lando mão-de-obra do mais bai­xo nível, de obras que fizeram moda em épocas de proibição, tais como Zaza Diabólica ou A Marca dos Avelares…

Os dois livros que agora apre­sentamos, embora no melhor es­tilo pornográfico, procuram ir contra tal estado de coisas – ca­pas discretas, texto cuidado e um certo sentido da elegância, do “saber fazer” narrativo que dá encanto aos percursos demoníacos que apresentam.

Apolline no Inferno, como te­ma fundamental, apresenta a busca desesperada de duas mu­lheres (mas não busca sentida, em algum momento, como de­gradante) dos prazeres da carne, num antro de jogos eróticos em que elas são as únicas parceiras lançadas para a satisfação dos desejos de um grupo de homens de aspecto ameaçador, revelando o encanto dos traços da estranhe­za social, das marcas do vício, da postura da brutalidade.

Apolline no inferno foi editado em Portugal em 1988.


Numa reviravolta que não ilu­de, as mulheres são permanente­mente nomeadas, mas os homens mantém o anonimato que faz de­les meros objectos de prazer… Pequeno truque com que se pre­tende ocultar a obsessão dos fan­tasmas masculinos, sob a apa­rência do prazer da mulher.

Atendendo a que a heroína e principal incitadora é casada, te­mos o quadro da ruptura com os padrões fortemente evidenciada.

Caprichos de Uma Noite, quan­to a nós, é uma história ainda mais sofisticada que a anterior.

Além de apresentar todas as in­submissões que já apontámos no outro livro – a relação extra­-conjugal, sobretudo a da mu­lher, o sexo em grupo, a busca do prazer pela personagem femi­nina –, esta história revela ainda um outro factor de aliciação: o percurso da mulher numa noite de Paris e dos seus arredores, acompanhada à distância, pelo olhar fascinado do seu amante que actua como um espectador, mudando permanentemente de parceiros.

O gosto com que está escrita a história, a qualidade que consegue imprimir à narra­ção de sequências normalmente encaradas de mau gosto, fazem deste livro uma obra muitíssimo agradável e de leitura nada cho­cante.

O que ressoa sempre, no hori­zonte desta história, na dimen­são do percurso físico (onde a outra, Apolline no Inferno, era a obsessiva repetição do cenário do pôr em palco o sexo, numa boa aprendizagem de Sade), é a aventura da busca – há, efecti­vamente, qualquer coisa de Quê­te no deambular programado de Sylvie, pelas noites da cidade, pelos antros do prazer, pelas mo­radas da existência liberal e liber­tina.

O que se pretende descobrir nesta viagem ao fim da noite pela estrada dos sentidos é a dimen­são suprema do amor do casal que acaba por ser alcançado pela heroína e pelo seu amante-comparsa.

 

Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


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