Entrámos
no Mercado do Bolhão com o ânimo do sol, que ia varrendo o frio invernal,
entusiasmados com mais um projecto fotográfico, desta vez num espaço icónico da
cidade, após o restauro. As escadas em caracol aliciaram-nos à primeira
experiência, logo interrompida pelo zelo dos seguranças, a informar-nos da
proibição de fotografar no local: só com autorização da Câmara. Mas selfies,
com o telemóvel, já se podia.
Passámos energicamente às ditas-cujas, à entrada do Mercado, perdido o ânimo acalentado durante meses e desorientados pelo absurdo de normas arbitrárias, que escolhem promover o vício da imagem sem fulgor, despejada nas redes sociais, a apoiar uma arte com fundura. Afinal, para se ser artista é preciso pagar taxa.
A
boa vontade tenta desculpar os porta-vozes, que, coitados, estão apenas a
cumprir ordens e não se lembram de usar do senso crítico para questionar a
autoridade. Se se chega ao fim da cadeia e se descobre quem responsabilizar,
nem por isso os motivos se tornam claros: é assim só porque sim. Muitas vezes,
nem os próprios sabem de onde vieram nem porquê: as regras têm o seu fim em si
mesmas e devem ser cumpridas apenas porque são Regras.
Aposto
que algumas somente vêem a luz do dia porque alguém, para seu gáudio secreto,
resolveu fazer a experiência: “Deixa ver se os sonsos comem e calam”. E os
“sonsos” fazem isso mesmo, porque lhes dizem que são Regras, com os olhos
arregalados, a dar ênfase ao “r” em maiúscula, que inicia o outro termo
sacrossanto do burocratês: o Regulamento.
Pergunto-me
se um dia destes se pagará multa por contemplar um qualquer edifício urbano –
se nos perguntarão se a objectiva da memória usa lente profissional ou se o
olhar é meramente turístico e com intenções de lazer, amador, leigo ou
de(s)formado. Assim já pode ser, posto que o material seja armazenado durante
prazo restrito.
O exercício da liberdade criativa incomoda, com o seu potencial transformador, sobretudo se for em praça pública – essa que é de todos. Para isso, é preciso ter-se licença e reconhecer-se o mecenato, preencher requerimento, pagar feudo ao senhor. O mesmo acontece na dança, por exemplo, em que os bailes têm de ser clandestinos e sujeitar-se ao planeamento furtivo, para que continuem a ser livres. A arte, a alegria têm de ser programadas, consentidas e devidamente taxadas ou confinadas a espaços privados e às paisagens de que o município ainda não se apropriou e a política ainda não se lembrou, mas onde os drones já entram sem pedir licença.
Em breve, poucas
restarão, já que os esforços de “sustentabilidade” se tornaram a desculpa
perfeita para se legislar cada palmo do mundo habitado e se adoptar uma
ingerência grosseira na vida e na mente do indivíduo, em nome do “bem
colectivo”. Do colectivo de déspotas, note-se.